Marcelo Mirisola*
Tenho duas lembranças do primário. As mãos da tia Maria José e o corpo retalhado de Tiradentes nos livros de história. Eu fazia uma confusão danada com as pessoas e os pedaços que representavam. Para piorar tinha uns profetas caolhos de um tal de Aleijadinho a me encarar com desconfiança. Bifes. Tia Maria José é que me protegia deles. Desde sempre aquelas cidades mineiras; São João Del-Rey, Congonhas do Campo, Ouro Preto, Mariana e os seus inconfidentes gritaram na minha imaginação. A palavra inconfidência foi a primeira coisa importante que aprendi – e que de fato guardei da época da escola. O resto foi selvageria, o Borba Gato na avenida Sto. Amaro e tempo perdido.
Algum dia, se oportunidade houvesse, eu sabia que ia conferir os “gritos” in loco. Viajei pelo interior de Minas Gerais nessa última semana. Quebrou meu galho. Uma vez que o Père-Lachaise e o túmulo de Jim Morrison não ficam atrás da igrejinha dos Cabrestos, e como eu estava mesmo dando bobeira às margens do São Francisco, resolvi que da Serra da Canastra (sem Lei Rouanet, nem ninguém para me pagar a conta) subiria no primeiro ônibus para Alfenas, e de lá seguiria para Três Corações. Oportunidade houve, portanto.
Quero dizer que a primeira etapa da viagem não tem nada a ver com os inconfidentes. Mas na próxima crônica eu chego lá. Prometo.
Da terra do Pelé para São Tomé das Letras é pertinho, coisa de
De perto, entretanto, o lugar devia se chamar São Tomé dos Puxadinhos. Não me lembrou nem vagamente a porralouquice que decerto aconteceu naquelas plagas no começo dos anos 70 do século passado. Ah, eu era criança nos 70, e perdi o melhor da festa…
Naquela época eu me divertia vendo televisão. Hoje é o contrário: as televisões é que nos assistem, em todos os lugares, e no mesmo canal. Isso não tem graça. Vi galpões nesses lugares. Um monte deles: em todas as cidades que passei, desde a mais careta até a ex-esotérica São Tomé das Letras, uma infinidade de galpões pintados de verde-limão e roxo-sétimo-dia. O que aconteceu com o Brasil de Niemeyer? Dizem que o velho comunista casou-se recentemente e virou troféu reciclado de Fórmula 1. Parece que o Brasil não existe mais. O que existe é a ajambração; esta sim é perene porque se prolonga, irradia. Não só nos galpões, mas na política, nas artes, nos alto-falantes das camionetes, na roupa e na gíria de mano que a garotada de todas as quebradas – por absoluta falta de lastro e excesso de informação – foi meio que “obrigada” a adotar. Ferréz é o Clodovil e Mano Brown é a Coco Chanel do século XXI. O Brasil foi pichado. Executaram Jeca Tatu em praça pública, confundiram-no com Judas, o traidor.
E tem mais. Eu viajei por um Brasil que foi pichado física e metafisicamente. No primeiro caso, o emporcalhamento é ostensivamente tímido (leiam Os muros do Colégio Santa Cruz). No segundo caso – muito pior – quem emporcalha é o colorido; como se o verde limão e o roxo-sétimo-dia conferissem uma espécie de poder à maçaroca que brotou dos escombros subliminares de um país que foi sem nunca ter sido. Funciona assim: o dono do supermercado ganha do concorrente e leva a paisagem na base do grito, como se não gritasse. Ganha na gordura, ganha na cor. Para não chamar pelo óbvio nome de urna funerária, vou chamar esses blocos de cimento e lajes sobrepostas de Brasil, novembro de 2008. Chinelo de dedo e bermudão. O Brasil que eu vi da janela do ônibus é um país rasurado até na ingenuidade não cumprida.