Da janela, Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim viu mais que o Corcovado, o Redentor, ou o doce balanço de um corpo dourado a caminho do mar. Em seus 67 anos de vida, o maestro soberano fez música das alegrias e das tristezas do amor, contou coisas que só o coração pode entender.
Entrecortando o mar, a mata e o sertão, ambientes nos quais buscava inspiração para suas composições, Tom Jobim enxergou um Brasil que não é para principiantes, um país de cabeça para baixo, onde o sim gera o não e o sucesso é uma ofensa pessoal.
Músico brasileiro que alcançou maior prestígio internacional, Tom é autor de frases cortantes de um Brasil que nem sempre reconhecemos na visão paradisíaca reproduzida mundo afora por suas próprias canções. Eis uma de suas célebres declarações: “Este é um país em que as prostitutas gozam, os traficantes cheiram e em que um carro usado vale mais que um carro novo. É ou não é um país de cabeça para baixo?”.
Língua afiada
Dono de um discurso engajado na defesa da natureza desde os anos 1960, quando a ecologia ainda era tratada na chacota como a ciência que estuda “o som que bate e volta”, Tom tornava explícita, a cada entrevista, sua preocupação com o futuro do mundo, o avanço das devastações, o crescimento desordenado das cidades e a explosão da violência urbana.
“O futuro já era: vou acabar em plena Amazônia asfaltada com um matitaperê empalhado no dedo”, dizia. Aos críticos, o compositor também reservou respostas ácidas. “Não gosto muito de falar da música. Não é assunto para ser falado. O cara compõe, justamente, porque não quer falar. E quem fala sobre música, no Brasil, geralmente não conhece o que está falando.”
Mas nem todas as declarações polêmicas atribuídas ao compositor eram reconhecidas por ele. E a insistência para que assumisse a paternidade de certas frases o incomodava profundamente. “Muitas vezes essas frases que dizem que é do Tom Jobim, eu jamais disse isso, como a saída para o músico brasileiro é o Galeão. Eu jamais disse isso”, declarou ao repórter Walter da Silva, da revista Qualis, em novembro de 1994, em sua derradeira entrevista. Para ele, uma parte da imprensa insistia "em botar o brasileiro contra o Brasil".
“Pretendo morrer aqui. É mais confortável morrer em português. Como é que você vai dizer para o médico, em inglês, que está sentindo uma dor no peito que responde na cacunda?”, brincou Tom, em outra entrevista. O desejo, porém, não foi atendido. Ele morreu no dia 8 de dezembro de 1994 no Hospital Mount Sinai, em New York, após complicações decorrentes de uma cirurgia para a retirada de um tumor na bexiga.
Deputado dos sabiás
No dia em que Tom completaria 80 anos de idade, o Congresso em Foco rende uma singela homenagem àquele que um dia foi retratado pelo poeta Carlos Drummond de Andrade como “deputado eleito pelos sabiás, canários e curiós para falar, não aos povos da Zona Sul, mas a toda criatura capaz de ouvir e de entender pássaros, trazendo-nos uma interpretação melódica da vida”.
Parte dessa “interpretação melódica da vida” do compositor ganhou tons especiais graças a parcerias inesquecíveis: de João Gilberto, Aloysio de Oliveira, Vinicius de Moraes a Chico Buarque, entre tantas outras. Clique aqui para saber mais sobre a produção musical de Tom Jobim em sua página oficial na internet.
A seguir, trechos de entrevistas dadas por Tom Jobim que ajudam a entender um pouco a visão do “maestro soberano” sobre o Brasil:
Introdução ao Brasil
”O Brasil não é para principiantes”.
“Este é um país em que as prostitutas gozam, os traficantes cheiram e em que um carro usado vale mais que um carro novo. É ou não é um país de cabeça para baixo?”
“Morar nos Estados Unidos é bom, mas é uma merda. Morar no Brasil é uma merda, mas é bom”.*
“O sucesso no Brasil é uma ofensa pessoal”.
“A imagem vitoriosa de Pelé parece que agride essa gente que não gosta de vitórias. Os brasileiros preferem Garrincha, porque ele morreu pobre”.
“No Brasil, tem-se muito medo que os outros se dêem bem. O Brasil é negativo com o sucesso. Nem falo de inveja, porque não entendo esse sentimento. Como é que alguém pode querer ser outro?”
“Neste país, o sim gera o não. As coisas boas são vilipendiadas. Isso aqui está virando um covil. É a degradação de tudo. Não podia ser diferente. Foram muitos anos de mentira. Essa mentirada toda da democracia de esquerda… E como podemos ser capitalistas, se odiamos o dinheiro?”
“É muito difícil, para todos os brasileiros, receber homenagens. Fomos educados para ser humildes, para achar que o dinheiro é uma coisa venal. Hoje em dia, essa posição não dá mais pé”.
“Sabe como é que eu vejo o Brasil? Este Brasil que eu não vejo aqui [no próprio Brasil] na televisão, embora eu tenha vinte canais aqui? Eu vejo o Brasil nos Estados Unidos… Aparecem os índios, aparecem eles caçando, eles comendo macaco, aparece tudo. O Brasil aí na fronteira com a Venezuela, na fronteira com a Colômbia, as pessoas andando no mato com flecha envenenada, com zarabatana. Aqui eu não vejo isso. Aqui não tem índio”.
Que país é este?
“Eu não consigo entender como o Brasil funciona. Mas o que se vê hoje é a desmoralização total. Pagamos todos os impostos e, em troca, ganhamos a insegurança e a morte. O dinheiro dos impostos paulistas vai para onde? Para Brasília sustentar aqueles parasitas? Imagine um país onde o psiquiatra é louco, o delegado é o chefe da quadrilha e o advogado ladrão, e os homens de bem são perseguidos?”
“De que adianta você pagar milhões de impostos e morar numa cidade que você não pode respirar? Que imposto é esse que você tá pagando? São as grandes cidades, né?”
“Os músicos não têm mais um ponto de encontro. Na minha carteirinha da Ordem dos Músicos há uma lista enorme de proibições e impedimentos. A música, tal como existia, não existe mais. Que assombro ver num país musical como o nosso, mas onde os músicos não podem viver! É isso o Brasil”.
"Sou um embaixador nato. Meu pai era do Itamaraty e fui parceiro durante 20 anos de um diplomata. Não vou para o exterior mandar as pessoas virem para cá para serem assassinadas em Ipanema. Eu vou dizer o que a um turista? ‘Vamos subir a Rocinha, o Dona Marta?’ De maneira nenhuma".
“[Ao responder o que ainda via de bom no país] Esse maravilhoso litoral brasileiro e as mulheres que andam por ele. As garotas de Ipanema, hoje, estão mais lindas do que nunca. Elas têm um perfil meio semita, meio tuaregue, um perfil egípcio, um pouco árabe”.
“É uma gente muito bonita. Essa mistura está criando uma bela raça brasileira, naturalmente entre os que podem comer. As moças de hoje são mais bonitas, estão mais despidas, fazem mais ginástica. No meu tempo, a gente conhecia pelo nome as que eram mais bonitas. Hoje, elas existem em profusão. O formato do corpo das cariocas está se aperfeiçoando. Na minha época era ‘dai-me gordura e eu te darei formosura’. Agora todas têm corpos de atletas”.
Faroeste caboclo
“Hoje todo mundo anda armado, todo mundo atira em todo mundo. Isso é obra do homem. Como se pode viver em uma cidade onde as balas estão crivando as paredes das casas e matando crianças no colégio? Está se matando no Rio, sem ao menos saber a quem se mata. Os assassinos estão matando quem não conhecem. Podiam, ao menos, treinar melhor a pontaria”.
“Aquela teoria do quanto pior melhor, deu nisso. Deu nisso que deu no Rio de Janeiro. Você não pode andar na rua, não pode andar de carro, não pode sair à noite. Você tem que ficar pagando imposto. De um lado, é o governo que quer o dinheiro, o executivo que quer dinheiro, a companhia que quer o dinheiro. E as pessoas? Pra onde é que vão? O que é que elas vão fazer?”
“Você tem de controlar a situação que está aí. Em caso de perigo, ou mato ou morro. Nós temos uma coisa muito hipócrita. Queremos que tudo seja bom, sem o Exército na rua, sem subir o morro. Nos Estados Unidos, quando a coisa piora, aparece a polícia e, se ela não der conta, aparece o Exército, com tanques e canhões. Mas dizer que é a favor do Exército nas ruas é antipático. Temos essa hipocrisia”.
“Fico perplexo vendo tudo isso. O Rio, por exemplo, essa dádiva de Deus, poderia ser uma cidade riquíssima, explorando seu turismo. E, no entanto, aqui se matam turistas para roubar as câmeras fotográficas. Eu teria pavor de ser presidente do Brasil, de assumir esse sistema de erros, esse negócio ingovernável. Deve ser terrível”.
“O Brasil não resolverá seus problemas sem um controle de natalidade. Não se pode educar milhões e milhões de crianças. Elas estão soltas pelas ruas e não agridem apenas os outros, mas se agridem entre elas mesmas. Vejo cenas terríveis na cidade: crianças se atacando com cacos de vidro. É muito selvagem, muito bárbaro”.
Tom por Tom
“Eu vou morrer um dia, a música vai ficar…”
“A gente só leva da vida a vida que a gente leva".*
“Você tem que ter alguma coisa que você ame, que você se identifique com a sua alma, com o fato de você ser brasileiro, com o fato de você nascer aqui nesse pindorama, terra das palmeiras debruçadas assim acima do Atlântico. Cheio de peixes, cheio de pássaros, de bichos, de índios, de tudo, né? Se eu tivesse nascido, por exemplo, na Europa ou nos Estados Unidos, certamente teria tido uma educação musical, supondo-se que eu fosse músico, uma educação musical mais refinada, mais profunda, ou qualquer coisa. Mas eu não iria escrever música brasileira por que eu não seria brasileiro. Aí eu iria escrever valsas, mazurcas, escrever foxtrote, talvez eu estivesse escrevendo heavy metal”.
“Estou cansado de dar entrevistas. Não sou mais homem nem compositor. Sou entrevistado. Noutro dia, queriam que eu escalasse a seleção brasileira de futebol. Mandei ligar para o Chico Buarque de Holanda”.
“Carrego nas costas a cangalha de fazer música brasileira e ficam me acusando de querer ser estrangeiro”.
"Sou brasileiro, faço música brasileira, não por questão de nacionalismo, mas porque não sei fazer outra. Se eu for fazer jazz, sou idiota, porque qualquer crioulo–da-Lapa deles toca melhor do que eu".
“Lamento dizer que não sou um sujeito do tamanho de Villa-Lobos, que se orgulha de ser o mais vaiado do mundo”.
“[Sobre a vaia recebida no Festival Internacional da Canção pelo público em 1968] É muito mais fácil agradar no tapete do Jackson Flores em Nova Iorque. Rico ri à toa. O público que paga para se divertir quanto mais paga mais bate palmas, não sai de casa pra vaiar”.
“Eu não sou muito de andar. Já fiz passeata e essas coisas. Lá em casa todo mundo era socialista, meu avô, meu padrasto, minha mãe. Lá em casa aquelas estantes de livros é tudo Engels, Marx e Lenin, né? Eu fui crescendo, eu fui ler aquele negócio, fui tentar entender aquilo. Essa geração minha, era toda uma geração de esquerda. Essa coisa do Brasil, ‘ordem e progresso’ misturado com o positivismo de Augusto Comte, e a crença que o comunismo e o socialismo seria a melhor solução para o Terceiro Mundo. Parece que a coisa não deu certo, não”.
Crítica aos críticos
“Eu deveria ser criticado pelo fato de ter descrito em minhas músicas um Brasil paradisíaco. Como diz o Sérgio Buarque de Hollanda, ‘a visão do paraíso’. Quer dizer, é essa visão que eu tenho nas músicas. Eu recebi muita carta do exterior de gente que ia se suicidar e que disse ‘olha, eu não vou me suicidar porque escutei essa música sua e acho que a vida vale a pena’, entende, e coisas assim. Coisas muito positivas”.
“Eu, por exemplo, não iria falar mal do Brasil porque eu não creio que isso venda disco. Se eu falasse mal do Brasil, o estrangeiro ficaria embaraçado, ficaria perplexo”.
“Não gosto muito de falar da música. Não é assunto para ser falado. O cara compõe, justamente, porque não quer falar. E quem fala sobre música, no Brasil, geralmente não conhece o que está falando. Mas a verdade é que a coisa se complicou. As máquinas e os teclados estão tomando conta do mercado, ocupando o lugar dos músicos, que estão todos se mudando para Bangu”.
“Não posso generalizar, mas sinto que há certa animosidade contra mim. As colunas sociais, que chamo de anti-sociais, não falam mal de bandido, porque bandido mata. Preferem atacar os homens de bem”.
“Agora muita coisa que se diz assim, ‘o Tom disse’, é invenção. O Tom disse, o Tom fala mal do Brasil, vírgula, no exterior, isso além de ser uma maldade incrível… Por que é que eu falaria mal do Brasil? Por que é que eles não dizem que eu falo mal da Tchecoslováquia, da Lituânia, né? Por que eu falo mal do Japão? Não, eles estão sempre interessados em botar o brasileiro contra o Brasil”.
“Se você fizer um anúncio do chope da Brahma a imprensa brasileira toda cai de pau. E depois a imprensa do Rio começa a falar mal, depois a de São Paulo começa a falar mal, depois o Rio Grande do Sul, depois o Brasil inteiro. São acordes, todos”.
“A imprensa brasileira nunca conseguiu dizer que um homem rico é rico. Então rica é a Maria Bethânia, o Chico Buarque… É uma brincadeira isso, eles são uns pândegos. Os homens ricos todo mundo sabe quem são, são homens importantíssimos, não preciso citar o nome deles. E eu acho ótimo que eles sejam ricos. Eu sou a favor da riqueza. Eu não acho que a gente deva cultivar a miséria. Como disse o Joãozinho Trinta, ‘ quem gosta de miséria é intelectual’”.
“Muitas vezes existe uma tendência de apresentar o artista como um ser venal. E parece que ninguém lê quando se dão boas notícias das pessoas. O que vende jornal e revista são as ‘bad news’. Isso é assim aqui e em qualquer lugar do mundo”.
Tom ecológico
“Vai ficando cada vez mais difícil. Esse é um negócio que eu cheguei a conversar com o Vinícius, vai ficando cada vez mais difícil. Por que você destrói a Mata Atlântica toda, você destrói a floresta amazônica, quando chegar no poema do Villa-Lobos, você não vai entender porque não tem a Amazônia”.
“Por exemplo, eu vejo no meu filho de 15 anos, como é que ele pode conhecer as qualidades de passarinhos? Ele não conhece. Ele não conhece os bichos, ele não conhece as árvores. Porque essas pessoas que aí estão nunca viram esse Brasil, esse Brasil eles não conhecem, eles conhecem o Brasil asfaltado, com o sinal vermelho, o guarda, a violência, a metralhadora, isso eles conhecem. Agora eles não conhecem a jacutinga, não sabem quando o murici floresce lá no alto da serra (árvores e arbustos que dão frutos), não sabem quando a jacutinga vai lá comer o coco da juçara. Eles não sabem o que é juçara, nem se a juçara dá coco, nem coisa nenhuma. Enquanto isso o pessoal, quando o outro fala de ecologia, começa a cortar mais depressa antes que apareça o fiscal, ou qualquer coisa que impeça a destruição. Porque toda arte é ligada ao seu tempo”.
“O futuro já era: vou acabar em plena Amazônia asfaltada com um matitaperê empalhado no dedo”.
"Estão destruindo as florestas, o Brasil não é mais bucólico, mas também não temos as comodidades do Primeiro Mundo, em que tudo funciona e está à beira da sua cama. Só há poluição, engarrafamento de trânsito. E quando você acha alguma coisa, pode ir preso: o maior crime neste país é a opinião".
Caso eterno
“Uma coisa boa que fiz foi ter ido embora para os Estados Unidos nos tempos do obscurantismo. Mas hoje eu não iria de novo. Só vou sair do país no dia em que não puder criar meus filhos e viver com minha mulher aqui. E não sei nada mais. Estou achando tudo muito esquisito. Há muito tempo”.
”Eu nunca teria ido aos Estados Unidos se o Itamaraty não tivesse me obrigado a ir aos Estados Unidos. E eu nunca teria tentado ir a América, uma coisa dificílima. Sair daqui depois de grande, sem falar inglês, tentar a vida, tentar o quê? Ser o quê? Sapateiro, pianista… As profissões são poucas, ditador, carteiro, soldado”.
“[Perguntado sobre por que sempre voltava para o Brasil] Volto para me aporrinhar. Para responder este tipo de pergunta. Para ser um dos 5% de brasileiros que pagam imposto de renda. Para perder o apetite ou morrer de indigestão. Volto porque nunca saí daqui”.
“Pretendo morrer aqui. É mais confortável morrer em português. Como é que você vai dizer para o médico, em inglês, que está sentindo uma dor no peito que responde na cacunda?”
Fontes:
www.tomjobim.com.br
Revista Qualis, 30 de novembro de 1994 (entrevista concedida a Walter da Silva)
Jornal do Brasil, 1º de março de 1992 (entrevista concedida a Cleusa Maria)
O Globo, 25 de janeiro de 1987
Revista Manchete, 1970 (entrevista concedida a Carlos Lacerda)
* Frases clássicas atribuídas a Tom
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