Era 6 de março, e eu me lançava a mais um dia de trabalho. No plenário do Senado, sacrossanto recanto contíguo ao comitê de imprensa, palco de decisões eternamente observadas por um Ruy Barbosa eloquente em seu silêncio, arremedavam uma “homenagem” ao Dia Internacional da Mulher. Diploma Bertha Lutz, pétalas em verso e Rosa de Pixinguinha, aroma de flores do campo no ar, pompa e circunstância… E o peso cru da realidade.
Era Renan Calheiros a abrir a sessão solene, ladeado pela réplica peemedebista da Câmara, Henrique Eduardo Alves. Alguém diria que eles eram os espinhos a maldizer a maciez das rosas. Eu os defendo – sua função ali era ressaltar a impertinência dos homens. O infante Henrique 11 Mandatos até registrou, empoleirado em seu mau jeito: “Renan, me desculpe a informalidade, mas vendo aqui de cima o perfil deste plenário, do jeito que as mulheres estão indo… Cuidado, senadores, para esse perfil não ser, muito em breve, o que venha a ocupar o Plenário do Congresso Nacional”, gracejou o potiguar, com a graça dos escaravelhos.
“Que aconteça!”, emendou o Lorde José Renan Vasconcelos Calheiros, do Reino das Alagoas. “Ah, que aconteça logo! Pelo menos no Senado, não é?”, aquiesceu o infante Henrique, cioso dos domínios patriarcais de sua Casa e seus 512 cavalariços.
A cerimônia pôde, depois dos gracejos e saudações protocolares, ser mergulhada na devida – e benquista – atmosfera. A cantora Emília Monteiro logo desfez o desencanto com o alento de “Rosa”, do mestre Pixinguinha. Divina e graciosa, a força fêmea da mulher finalmente tomava conta do plenário. Antiestátua majestosa, a senadora Ângela Portela colocava as coisas no lugar. Tomava assento na mesa plenária, de onde trocaria gentilezas com congêneres como as deputadas Cida Borghetti e Flávia Morais.
(Pausa para o encantamento)
Janete Capiberibe, Janete Rocha Pietá, Liliam Sá, Lídice da Mata, Luci Choinaki, Luciana Santos, Lúcia Vânia, Maria do Carmo Alves e Vanessa Grazziotin (esta, sempre no final do alfabeto) vicejavam sob o olhar atento de outro peemedebista – este de linhagem, digamos, emedebista: Jarbas Vasconcelos, o pernambucano que é um modelo em termos de contemplação da mulher. Pronto. Aquele cenário me levaria ao sexto ano consecutivo, aqui neste espaço, a proferir loas a quem de direito.
E logo me veio o devaneio, em dimensões tão oníricas quanto os olhos de Stefanie von Pfetten: afônica de tanto falar e Dilma não ouvir – a presidenta era a estoica ausência –, Gleisi Hoffmann pedindo a palavra; Manuela D’Ávila negando, depois de tomar o lugar de Ângela Portela; Bruna Furlan adentrando o recinto em largos passos, a trajar camisa de Guevara; Rebecca Garcia em vigília amazônica; Teresa sem Jucá, trazendo rosários da prefeitura; Renata Bueno aquecendo o verbo à italiana, agora pessoalmente a me entrevistar. Eis que a filha do Garotinho, a mal imitar o nome da Clarice maior, anuncia a chegada do único homem autorizado pelo doce império a adentrar a sessão-fantasia. Eu mesmo, com um recado que ora reproduzo (eu avisei; estamos em um sonho-devaneio):
“Caras damas, convido-as a ignorar minhas letras. Mas não, jamais as convidaria à ignorância, pelo simples fato de que isso não faz parte de vossa natureza. Assim, convicto do menosprezo ao que digo, mas ciente da sua fêmea sabedoria, gostaria de pedir-lhes algo. Olhem-nos, homens sob teu encanto, apenas com os olhos de mulher – esqueçam cada vez mais em casa o mecanismo e as lentes de defesa. Larguem-se em cada vez mais braços, merecedores ou não de teu ‘peso’ – estendam a área a ser orvalhada. Desfilem com ou sem pressa, ininterruptamente, e de preferência sempre descalças – dediquem aos nossos lábios as solas de teus pés, quando deitarem. Preocupem-se menos com roupas, que tua pele nos veste – nada queremos entre nosso toque. Chorem muito mais, tristes ou em regozijo semi-orgásmico, e ensopem-nos de vossa essência – precisamos de vitamina. E sorriam, senhoras e senhoritas, sorriam com tanta força, com ou sem razão, com ou sem vontade, de tal forma que jamais voltemos ao normal – nós, homens de teu bel-prazer, padecemos da falta de vossa luz em meio a afazeres. Reitero, senhorinhas, ignorem minhas letras. Mas jamais a mim, ou ao que digo com voz rouca, insuficiente. Sei que é muito o que peço; mas é ‘pouco’ o que mereço.”
Acordei sozinho, em pleno plenário. Creio que desperto pela mesma parlamentar que havia iniciado todo aquele desvario, impiedosamente, ao tomar as rédeas da cerimônia de “homenagem” – pétalas amarelas, alaranjadas e brancas ainda repousavam no azul nada oceânico do carpete senatorial. “Nós, senadoras, sentimos que há um tratamento diferenciado pelo fato de sermos mulheres, uma vez que aqui predominam homens. Mas isso não nos faz esmorecer na luta pela igualdade entre homens e mulheres”, recitou Ângela Portela, reconduzindo-me à embriaguez primordial de mísero homem. Eu que só queria saber se elas – e vocês que leem – ainda se sentem, que seja em um átimo de segundo por dia, devidamente cultivadas.
De minha parte, lembro não ser esta a primeira vez – não será a última – que lhes escrevo essas sentimentalidades. Com as bênçãos de Eça, peço mais uma coisinha: sempre nos permitam beijá-las devotamente. Só assim nossa existência fica superiormente interessante.
A mulher quando as ruas eram de fogo (2012)
Mulher, a auto-homenagem (2011)
Sobre Iemanjá, Clarice e a “menina do pedido de criança” (as três marias) (2010)
Mais flores em vocês (2009)
Flores em vocês (2008)
Post scriptum: ponto positivo para Lorde Renan. Na mesma sessão solene de que se trata acima, ele nomeou a comunista Vanessa Grazziotin para a Procuradoria da Mulher no Senado. Entre 81 senadores em atividade, temos oito mulheres. Oito mais do que oitenta: se toda mulher é heroína por natureza, Vanessa, a quem alguns engraçadinhos chamam de She-Ra, deve valer por dezenas de homens, senadores ou não. Obviedades… Toda mulher é dotada de superpoderes.