Saulo Said*
A presidente Dilma Rousseff enviou ao Congresso um projeto de lei que livra o governo da necessidade de fazer superávit primário em 2014. Pela alteração da lei orçamentária, o governo desconsideraria todas as despesas do PAC (uma despesa realizada) e consideraria todas as receitas com desonerações — uma receita inexistente. A Ministra do Planejamento, Mirian Belchior, alega que as receitas não cresceram como o esperado devido ao baixo crescimento do PIB, que seria reflexo da “crise internacional”. A lógica do argumento é: como as receitas não subiram como previsto, então as contas entraram no vermelho. Nesse texto, analisamos se essa justificativa do governo tem fundamento.
Afinal, a deterioração das contas públicas no Brasil é uma peculiaridade de 2014, ou uma tendência mais antiga? Para responder a pergunta, apresentamos o superávit primário do governo central (excluídos estados e municípios) desde o segundo governo Lula.
Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional. Resultado Fiscal do Governo Central (setembro de 2014)
Como se observa, nem mesmo o auge da crise internacional em 2009 o país atingiu o déficit nas contas públicas (mesmo com importante queda na receita). O segundo governo Lula foi exemplar no cumprimento da meta fiscal. Sob o governo Dilma, o único ano em que o superávit se equiparou ao do governo anterior foi 2011. Em 2014 (desconsiderada a manobra contábil) o superávit (se houver) será menor do que em 2013, que por sua vez foi menor do que em 2012, que também foi menor do que em 2011. Ou seja, os resultados de 2014 se inserem numa trajetória de relaxamento do superávit primário, que se inicia em 2012.
A explicação para isso encontra-se na velocidade de crescimento de receitas e despesas. Em 2011, as receitas cresceram mais do que as despesas (4,3% e 3,2%, respectivamente). Nos dois anos seguintes, as despesas cresceram mais do que as receitas (mesmo com a utilização do Fundo Soberano em 2012). Ou seja, a queda no superávit primário (que ocorre a partir de 2012) tem a ver com a elevação das despesas e não com redução ou baixo crescimento das receitas.
Entretanto, isso não nos diz nada sobre 2014. O que podemos concluir sobre este ano? Os nove primeiros meses desse ano teriam sido terrivelmente ruins, em termos de arrecadação? Como só temos dados até setembro de 2014, vamos comparar esses nove meses com os nove primeiros meses dos anos anteriores.
Não há nada novo sob o sol no lado das receitas: ela cresceu nos nove primeiros meses de 2014 o mesmo que têm crescido desde 2011. Este ano fora o único em que as receitas cresceram a ritmo superior ao crescimento das despesas. No ano de 2014, as receitas cresceram algo muito próximo do que cresceram nos anos anteriores (na verdade, cresceu ainda mais do que se observou em 2011 e em 2012). Observa-se que, desde 2012, nos nove primeiros meses a despesa cresceu muito acima das despesas.
Entretanto, falar de 2014 como se fosse algo homogêneo é incorreto. No gráfico a seguir, apresentamos o superávit acumulado mensal (março, por exemplo, é o resultado acumulado de janeiro, fevereiro e março).
Pelo gráfico, sobressaem três movimentos. Entre janeiro e abril, o governo conseguiu acumular um superávit de R$ 29 bilhões, tornando factível o cumprimento da meta. Nos meses de maio, junho e julho, o superávit manteve-se em torno de 17%, o que tornava improvável o cumprimento da meta, mais o país ainda operava com saldo. Entretanto, nos meses de agosto e setembro (coincidentemente o período eleitoral…), o governo saiu da situação de um superávit de 15 bilhões, para um déficit de R$ 15 bilhões. E a explicação para isso não está do lado das receitas. Entre janeiro e julho, a arrecadação mensal foi (em média) de R$ 82 bilhões; nos meses de agosto e setembro a média de arrecadação foi idêntica (R$ 80 bilhões). Entretanto — eis o “x” da questão da questão — nos sete primeiros meses, a despesa média foi de R$ 80,5 bilhões, já nos dois meses eleitorais a despesa média foi de R$ 95,5 bilhões!
Posto isso, chegamos a três conclusões. (I) O que ocorre em 2014 é o resultado natural de um progressivo relaxamento do superávit primário que ocorre desde 2012. (II) Entre o governo Lula II e Dilma I a mudança não foi só de conjuntura, mas de política econômica, isto é, uma menor preocupação com a saúde das contas públicas. (3) O déficit acumulado em 2014 foi forjado no contexto das eleições presidenciais. Portanto, a manobra contábil (que é reprovável por si mesma) torna-se ainda pior quando acompanhado de justificativas flagrantemente falsas.
*Saulo Said é mestre e doutorando em Ciência Política pelo IESP-UERJ