A história no Brasil se faz muitas vezes de forma patética. Foi o que aconteceu ontem, o fatídico 3 de agosto em que o Congresso voltou das férias. O senador Pedro Simon (PMDB-RS) subiu à tribuna para pedir o que a mim e a todas pessoas que conheço parece óbvio: que Sarney precisa deixar a presidência do Senado, não tem a menor condição de conduzir o cargo por mais, vejam só quanto lhe resta de mandato, um ano e meio!
Foi o que o Simon disse, e dizia com educação, adornando as palavras com gentilezas. Ressaltou a biografia de Sarney. “Uma brilhante trajetória, não tem outra igual”, incensou. E deu o recado: “O presidente Sarney deveria entender que a renúncia dele à presidência seria um grande ato”.
Ocorre que a tropa pró-Sarney havia se preparado para o combate. E saiu a campo com fúria. Quem teve papel-chave na peleja é uma das figuras que hoje levam muitos brasileiros a questionarem se o país de fato precisa do Senado, se não é melhor adotar o sistema unicameral seguido por outras nações. Ele mesmo, Renan Calheiros (PMDB-AL). Aquele flagrado pela TV Globo em um caso fantástico de desacordo entre bois, relações comerciais e notas fiscais, aquele acusado de ter contas pessoais pagas por uma empreiteira, aquele que a esmagadora maioria dos brasileiros quis ver cassado e que sobrevive como senador, homem forte da base governista e principal sustentáculo de Sarney.
Renan pediu aparte para desqualificar Simon. E assim fizeram vários outros senadores, todos, no meu modesto juízo, razões em carne e osso para fazer das transmissões ao vivo das sessões do Senado um programa indigesto. Gritaram, mostraram os dentes, enrijeceram os músculos. Collor foi o mais agressivo. Renan, o mais cruel. Falou que Simon não aceita até hoje o fato de Sarney ter lhe tomado o lugar de vice na vitoriosa chapa de Tancredo Neves. Tancredo adoeceu, e, você sabe, Sarney tomou posse em março de 1985 como o primeiro presidente civil desde o golpe militar de 1964.
Também pôs em dúvida o caráter do correligionário. Renan disse que Simon foi no início deste ano um dos defensores da candidatura de Sarney à presidência do Senado. “Vossa Excelência faz isso no particular e vem para a tribuna defender o que imagina que a sociedade defenda”, atacou.
Senadores do PSDB, do PT, do PSB e do PMDB esboçaram, de forma tímida, a defesa do afastamento de Sarney. Os pefelistas do DEM não deram as caras. Garibaldi Alves (PMDB-RN) pediu a Collor que retirasse suas palavras mais agressivas (não foi atendido, claro), e somente Cristovam Buarque (PDT-DF) levantou a voz em favor de Simon.
Pedro Simon, ora nitidamente acuado, ora aos gritos, enfrentou praticamente sozinho a ira de senadores com voto e pouca expressão e de senadores vistosos, mas sem nenhum voto – como Wellington Salgado (PMDB-MG), suplente do atual ministro das Comunicações, Hélio Costa.
Botaram o Simon na parede. Transformaram o daqui-não-saio, daqui-ninguém-me-tira de Sarney num refrão coletivo, ainda que estejamos falando de uma “coletividade” muito peculiar. E agiram com notória descortesia em relação a um senhor de 79 anos, ex-governador, ex-ministro (de Sarney) e senador pela quarta vez.
Em novembro de 1998, Simon subiu à tribuna e foi ouvido por um plenário cheio e silencioso. Como é hoje, era naquela época alvo de desconfiança do governo e da oposição. Mas ninguém o desrespeitou, e deu-se o que a maioria dos observadores considerava então não improvável, mas impossível: a queda do poderoso ministro das Comunicações, Luiz Carlos Mendonça de Barros, questionado por seu comportamento durante a privatização.
Desta vez, foi tudo diferente. Além de ser intimado a “engolir” suas palavras, Simon falou para um plenário quase vazio. Quem o aparteava logo em seguida deixava o local para acompanhar pela TV, ou pelos relatos de aliados e assessores, o resto do pronunciamento, que durou cerca de duas horas.
Imprevisível o destino que terá Sarney. Tanto nas hostes do governo quanto da oposição, há quem o apóie e quem apele pela renúncia. Talvez ele permaneça no cargo até fevereiro de 2111, como desejam Renan & cia. Talvez as circunstâncias tornem tal fato impossível, e Sarney renuncie, possibilitando uma nova eleição para a presidência do Senado, como defende a própria bancada do PT.
Mas, se uma coisa ficou clara, é que não foi Simon quem tentaram massacrar ontem. Fomos nós. Eu, você, seu vizinho, sua sogra… nós, a imensa maioria que assiste escandalizada muito mais do que a sucessão de notícias sobre informações censuradas pela Justiça, atos secretos, gastos abusivos de passagens aéreas, relações suspeitas entre altos funcionários e empresas contratadas, nepotismo etc. Muito mais do que tudo isso, assistimos ao espetáculo de hipocrisia com o qual o Senado – e também a Câmara dos Deputados – se habituou a nos brindar. O de fingir que não houve nada e usar a sórdida estratégia de tentar intimidar quem ousa nadar contra a corrente dos desacertos consentidos.
Usando palavras empregadas ontem pelo mesmo Simon: “É o lixo jogado para o tapete, é deixar como está”. Deixaremos que eles deixem?