A Câmara e a sociedade civil retomaram uma importante discussão pouco antes do recesso parlamentar e reiniciam a atuação legislativa com o tema em pauta. É o Projeto de Lei nº 84/1999, que tipifica os chamados cibercrimes – condutas realizadas mediante uso de sistema eletrônico ou contra sistemas informatizados. O projeto é conhecido, também, como
“AI-5 Digital”. E, muito embora alguns defendam que este apelido é um exagero, entendo que é justificado. Por quê? Porque cria um estado de exceção permanente na internet, que controla e pune os usuários. O projeto, além da censura e vigilância, também apresenta problemas jurídicos. Estes vão desde a ignorância de princípios fundamentais do Direito Penal e chegam a graves ofensas à Constituição.
Nesse sentido, é importante elucidarmos que há um princípio basilar do Direito Penal que orienta a regulamentação das normas criminalizadoras.
Segundo essa regulamentação, a tutela penal só se justifica para proteger bens jurídicos relevantes, que representem valores sociais importantes para todos os cidadãos. O PL do qual falamos é o oposto disso. Os testes de segurança de sistemas, por exemplo, ou a identificação de vulnerabilidades (para sugestão de melhorias), são tipificadas como crimes, muito embora fique evidente que não há qualquer lesão.
Mas os problemas não se encerram aqui. Um segundo princípio do direito penal também é ignorado pelo PL 84/1999: a taxatividade, que impõe ao Estado a redação dos tipos penais de forma clara e restrita, impossibilitando a sua aplicação arbitrária. Em outras palavras, isso significa dizer que todo indivíduo, para poder se comportar de acordo com as regras da sociedade, deve saber claramente o que é proibido. Como vamos, então, admitir um PL que pune o cidadão e, ao mesmo tempo, descreve de maneira vaga e ampla as condutas que visa regrar? Um exemplo dessa redação mal formulada é a definição de “sistema informatizado”. Ora, será suficiente dizer que sistema informatizado é qualquer sistema capaz de processar, capturar, armazenar ou transmitir dados eletrônica ou digitalmente ou de forma equivalente (que abrange todo software, sistema operacional ou programa embarcado em qualquer dispositivo)? É clara a resposta: não.
Toda vez que suscitamos o tema da época em que vivemos, falamos da velocidade com que as coisas acontecem e a tecnologia evolui. O que hoje é novidade, em pouco tempo tem grande chance de estar superado (em muito, aliás). Isso se dá não apenas nas questões relativas à tecnologia, afinal vivemos na era da propriedade intelectual, das operações financeiras eletrônicas, das redes sociais virtuais. Nosso comércio já não é mais com caixas manuais, muitas transações bancárias já não exigem a presença de um funcionário. Não se pode, portanto, excluir desse processo evolutivo a transformação pela qual passa, por óbvio, o Direito.
O Direito, assim como parte significativa da nossa rotina, tem de se adaptar às novas dimensões da vida social e, por consequente, estar atento às particularidades da era digital. Nesse sentido, a informação deve ser tratada como bem público. Isso significa considerar a liberdade de informação e seu fluxo irrestrito como base e pré-requisito para um sistema econômico, político, social e cultural livre. O PL 84/1999, faz o contrário. Ele traz como eixo a potencial criminalização das condutas que garantem essa liberdade. Representa claramente um entrave ao desenvolvimento nacional.
Criminalizar condutas comuns no mundo informatizado, sem que haja de fato risco de que algo ou alguém seja lesado, é criar uma solução simplista. Mais, é frear um ritmo de desenvolvimento que já consolidamos e cujo potencial nos permite ser potência mundial.
A regulamentação das condutas realizadas na internet não pode criar mais um espaço para que o Estado aja como ente punitivo. Ao contrário, acredito que deve criar limites para o seu exercício, garantindo a devida liberdade no mundo virtual, que possibilite a responsabilização por condutas abusivas, sem que, para isso, se recorra ao cerceamento de garantias fundamentais.
Deixo por fim a lembrança de que não existe anonimato na rede. Esse é um fato relevante. Os crimes são reais, praticados por pessoas reais.
O meio em que se dão é virtual. E as personagens podem ser virtuais.
Mas com investimento em inteligência – e não em punição – solucionam-se os problemas com muito mais eficácia. E o marco civil tem papel fundamental nesse sentido. É ele que determinará os direitos e os deveres na internet. A partir de sua aprovação, sim, cabe uma discussão sobre punição e tipificação de cibercrimes.