O novo Código Penal (se for aprovado pelos legisladores) pode estimular a esperança de que o Brasil amenize parcialmente a tendência a tratar o crime e a segurança com truculência medieval. Comparado com o código anterior, influenciado pelo Códice Rocco da Itália fascista e envenenado pelo obscurantismo integralista e o autoritarismo de Vargas, este parece uma joia.
Entretanto, uma sociedade só é verdadeiramente civilizada quando abandona o maniqueísmo e entende que o crime é sempre produto de uma disfunção, que pode ser psicológica (caso do marido ciumento que bate em sua mulher) ou social: roubo, tráfico, assalto, etc. A disfunção social não é uma doença do criminoso, mas o resultado da repressão violenta, da privação econômica e do clima de desumanização de uma sociedade de classes semiescravista. Desde a época das rebeliões de servos há 2000 anos, até os trabalhos modernos de Foucault, Wacquant e muitos outros, é amplamente conhecida a reação criminosa como explosão de setores sociais encurralados.
Um CP não pode ser correto se ele não dá uma definição de crime compatível com o direito natural. Isso já foi mostrado por Karl Marx em seu brilhante artigo sobre o roubo de lenha, publicado na Rheinische Zeitung de 10/1842 (Vide), quando estava com 24 anos.
Nos países pobres e fortemente injustos, o papel do CP como método para a faxina racial e social é óbvio. Em geral, um pai que pega uma cartela de penicilina de uma farmácia para melhorar a saúde de seu filho é obrigado a comparecer ante um juiz que, na melhor e menos provável das hipóteses, o absolverá em meio a sermões humilhantes. Para uma sociedade onde o lucro do empresário é mais valioso que a saúde de uma pessoa não existe Código Penal justo.
É bom notar que, contrariamente ao que pensam algumas seitas stalinistas e social-nacionalistas, a iniquidade da lei penal não se elimina mudando o capitalismo privado pelo capitalismo de estado, embora isto possa certamente amenizar a crueldade. Ainda hoje na Cuba “socialista” é punido o crime contra a propriedade.
Entretanto, o novo código é um grande avanço, comparado com as leis de linchamento do Estado Novo. Ele contém punições contra o bullying e descriminaliza os pequenos consumidores de droga. Deve, sem dúvida, ser apoiado contra os muitos que, sem dúvida, tentarão que o Parlamento o rejeite. Mas seria um grave erro pensar que ele representa um grau de humanismo comparável ao dos países desenvolvidos.
O CP pode sugerir a pessoas mais informadas que já se atingiu o padrão internacional em assuntos como aborto e eutanásia, mas isto está longe de ser verdade.
No caso do aborto, as novas leis são muito mais abertas, mas ainda escravizam o direito de uma mulher sobre seu próprio corpo como nas mais atrasadas teocracias. A proposta dos juristas admite o aborto de uma mulher que não tenha condições psicológicas para ser mãe.
Isto é um avanço comparado com o código que criminalizava o ato, mesmo se a mãe pudesse morrer durante a gravidez. Todavia, essa idéia de condição psicológica é confusa e, pior ainda, não é a mulher que pode dizer se está bem ou mal psicologicamente. Isso será feito por uma equipe de psicólogos, que “lerão” o cérebro da vítima para saber como ela sente, e ficarão convencidos de que eles sabem melhor o que é bom para sua vida. Eles usarão tudo o que aprenderam nas faculdades de fim de semana.
Nestes dias, um jurista confrontado por militantes anti-aborto disse que uma mulher viciada em droga, que engravidara durante sua intoxicação, era um caso típico para aborto. Mas, então, mulher saudável não tem direito a escolher se quer ou não quer ser mãe?
Em qualquer país civilizado, o aborto nos primeiros três meses é feito sob a demanda da mãe em qualquer hospital público. Isto acontece em quase toda a Europa, inclusive em países dominados pelo fascismo, as máfias e os stalinistas, como a Itália, onde a Igreja, apesar de seu grande poder, foi vencida por pequena margem na votação sobre o aborto.
No caso da eutanásia, o novo CP é menos cruel. Um médico que ajuda a morrer sem dor a um doente terminal que lhe suplica o fim de seu tormento, podia ser castigado, no antigo CP, como um homicida que mata friamente uma pessoa para tirar-lhe a bolsa. Hoje, os compassivos magistrados o podem condenar a penas que estão entre dois e quatro anos de prisão: uma verdadeira pechincha.
Para fazer o fato mais bizarro, o juiz fica liberado para decidir se aplica ou não a pena. Ou seja, é um castigo “opcional” para um crime inexistente. Como alguém pode obrigar a outrem a viver a contragosto? Salvo na mente de místicos irracionais, ninguém pode acreditar que alguém tem mais direito sobre o próprio corpo que o “usuário” desse corpo, especialmente quando o objetivo é eliminar a dor, e não produzi-la (Por sinal, ninguém pune sinistros psicopatas que mutilam seus corpos com silícios em nome de mitos e fábulas).
Talvez os juristas possam adotar esta solução que eu penso que agradaria a todos. Em vez de punir quem aplica eutanásia, deve punir-se quem pede eutanásia. Ora, qual seria sua punição?
Obviamente, a pena de morte!
Além de outros detalhes, o novo CP torna os assuntos aborto e eutanásia menos brutais e sádicos, mas são ainda profundas injúrias contra a natureza e os direitos humanos. Se não fosse tráfico, seria irônico pensar que se chama democracia um sistema dominado por sabres e batinas, onde a ciência, o conhecimento e o humanismo são considerados crimes e pecados.