No final de 2007 participei – como jurado – da primeira etapa do Mapa Cultural Paulista.O Mapa, como o próprio nome diz, tem o intuito de procurar, “mapear”, ir atrás de talentos que, porventura ou desventura, não tenham sido revelados ao grande público. Existe há mais de dez anos. Não sei se, ao longo desse tempo, “revelou” alguém interessante. Além de escritores, o mapa procura atores, músicos, cineastas. Para tanto, promove concursos. O que, em tese, não é garantia de achar qualquer coisa.Em tempos de internet, uma passada d’olhos em três ou quatro blogues resolveria a questão, e economizaria uma boa grana do erário público. Os leitores hão perguntar: ué, então por que aceitou participar? Eu diria que, em primeiro lugar, aceitei o convite porque a grana era legal, depois porque acredito em garçons que usam gravata borboleta, bem como acredito nos correios e nas cartas de amor e, por extensão, meio que me convenci que também devia acreditar no romantismo do governo do Estado de São Paulo.
Vejam só.Em solenidade na Casa de Cultura de Bertioga fui apresentado ao Presidente da Academia de Letras de Itanhaém (ou teria sido Academia de Peruíbe?). Logo eu, que jamais ganhei uma gincana na vida, estava lá a decidir quem seria classificado para a próxima etapa do concurso. Coisa séria, que podia levar fulano a mudar de vida, ou acabar com a própria. Eu sei do que estou falando. Tinha um desejo sincero de encontrar um Rimbaud toda vez que abria uma pasta de trabalhos. Mas a cada texto lido minha ambição se arrefecia. Pensava comigo mesmo: se achar um arremedo de Marcos Rey já está de bom tamanho, pensava que sim.
Infelizmente não deu. Nenhum Rimbaud no Vale do Ribeira, nem um Aguinaldo Silva na Alta Mogiana para remédio. O que encontramos, eu e Evandrinho Grogotó Ferreira, Luis Roberto Guedes, e Wladyr Nader (prazer em conhecê-lo, Wladyr – grande abraço), e os demais jurados, desde a Baixada Santista, passando por Sorocaba e pela região de São José dos Campos, de leste a oeste, percorrendo rincões e canaviais sem fim, enfrentando apaches e canibais truculentos associados a primeiras-damas e intelectuais locais, sofrendo com a companhia de vendedores tagarelas e bêbados submersos, amargando horas em rodoviárias tristes, eu e meus colegas de bandeira, varando noites em espeluncas sem toalha nem sabonete, alimentado-nos de larvas,insetos e coxinhas hediondas, às vezes sem direito a geléia de morango no breakfast, até beirar o extremo sudoeste do Estado, lá nos confins explosivos de Sandovalina, Pontal do Paranapanema, onde fomos reféns de sem-terras que nos confundiram com padres masoquistas a serviço da Opus Dei , masoquistas quase, porém conseguimos provar aos sem-terra que éramos de outra facção religiosa, a ordem dos trouxas cavalgados por burocratas da cultura – ah, meia dúzia de emails resolveriam a questão… – isso depois de engolirmos quilômetros e mais quilômetros em ônibus claustrofóbicos ao som de Zezé di Camargo & Luciano, e até chegar onde Borba Gato perdeu as botas, enfim, o que encontramos, passados dois meses a golpes de facão, e varando sertões inóspitos sem traçar nenhuma nativa, foi um treco parecido com a Sinhá Barbina recostada num fogão à lenha a contar “causos” broxantes para seus netinhos aloprados; vale dizer: não vislumbramos sequer as turmalinas (isso mesmo, não eram esmeraldas) que enlouqueceram nosso febril colega Fernão Dias Paes em tempos idos,e nem tampouco o ouro de tolo que o ingênuo Raul Seixas reclamava em suas canções … Nada disso!Nem um corcel 73, nem uma boca escancarada cheia de dentes. Apenas Sinhá Barbina, a morte, e a melancolia das rodoviárias.
Nos deparamos com uma velha cabocla– repito! – maltratada em verso e prosa, tetas caídas, esgarçada e recauchutada, repetitiva, mas sobretudo teimosa e imobilizada: chafurdamos em variações e mais variações em torno de um ectoplasma insistente e gorducho que – parece – desde sempre arrasta-se placidamente sobre a modorra literária brasileira, uifa. Algo aquém de Jeca e de Tatu. A mesma timidez e a falta de atrevimento, as repetitivas ladainhas que remetiam a um passado rural idílico, e a um país que talvez tivesse existido em alguma novelinha das sete – com muito boa-vontade – em momentos gloriosos de um Valter Negrão, e olhe lá.
Penso que esse “modelo gorducho” queira dizer algumas coisas. Em primeiro lugar, a identificação. Sim, porque os modelos só podem se perpetuar por identidade, afinidade, conforto. Seria até plausível, se o ano fosse o de 1937, e os integralistas – com o apoio de Getúlio Vargas e da classe média conservadora – estivessem matutando o Plano Cohen. Não era o caso, convenhamos.
O que teria acontecido?Os mestres não resistiram à passagem do tempo? Existiria uma diluição de algo que sempre foi insípido?
Será que o Jeca Tatu tomou de assalto os livros de sociologia e antropologia, e deixou de ser um personagem de ficção para virar autor de si mesmo?
Isso sem falar nos umbiguismos galopantes. Quando os candidatos a escribas se distanciavam um milímetro do fogão à lenha, do bolo de fubá e da Sinhá Barbina, voltavam-se obsessivamente para (ou contra) o próprio umbigo. Nada contra o ensimesmado. Grandes autores tratam do tema. Clarice Lispector não existiria sem o seu enigmático umbigo. A mesma coisa poderíamos dizer de Virginia Woolf, Lucio Cardoso, e tantos outros. O problema se dá quando o umbigo em questão remete – invariavelmente – ao fogão à lenha, ao bolo de fubá e à sabedoria ancestral de Sinhá Barbina.
Diante disso, pensei nos meus tempos de escola. Em 1982 – quando eu tinha dezesseis anos.
Naquela época, Luiza Brunet era uma necessidade premente, digamos que me “inspirava” mais do que Machado de Assis. E tinha de ser assim e, aliás, deve ser assim até hoje. Por que insistir, ou melhor, enfiar Machado de Assis goela adentro de um punheteiro de dezesseis anos? Trata-se de uma sacanagem com o autor de Dom Casmurro. Em 1984 já era um desperdício, hoje – pensando bem – com as opções que o “mão peluda” tem na internet, e com a concorrência dos traficantes de drogas, a leitura de Machado é um atentado contra o próprio Machado. Uma condenação à revelia. Isso quer dizer: impossibilitado de comparecer à Rave, Bentinho, além dos vários chifres e olés que levaria de antemão, nem sequer teria uma chance de suspeitar do seu melhor amigo. Numa hora dessas – na melhor das hipóteses –, o amigo Escobar deve estar depilando a virilha no salão de beleza do traficante boliviano. Nelson Rodrigues, sim, faz sentido. Questão de tecnologia.
Há muito tempo os garotos desistiram de colecionar selos. E as meninas, por sua vez, deixaram de ser oblíquas Capitus para se transformarem em ostensivas biscates, elas colecionam abortos em vez de bonecas. O dilema de Bentinho e a biscatice de Capitu são quimeras perto de um jurássico Mario Bross da vida.Eu penso que é quase um crime obrigar um adolescente a abrir um livro de Machado de Assis. O sujeitinho(a) – obrigado a ler o resumo de Dom Casmurro – vai acabar mesmo é misturando literatura com a Tabela Periódica dos Elementos. Para ele (a), Machado de Assis e a massa molecular de um polímero são a mesma aporrinhação: vão cair no vestibular. Só isso. Aos dezesseis, dezessete anos, o(a) garoto(a) simplesmente não têm os instrumentos cognitivos, morais, psicológicos e intelectuais para chegar a qualquer lugar diferente da cantina da escola, ou da própria genitália. Será que é tão difícil de entender? Nessa idade, lembro, eu não sabia nem sequer dizer bom-dia. Não digo que devia ser proibido ler Machado de Assis aos dezesseis anos, porque sempre existirão os Nerds e as exceções de praxe, mas facultativo.
Agora, proibido mesmo, devia ser a leitura de Tomás Antônio Gonzaga e cia ltda, ah, não lembro de nada tão broxante quanto Marília de Dirceu, do supracitado árcade. Os românticos aliás, e a mania deles de idealizar mulheres branquelas e fantasmáticas, não eram menos modorrentos, a turminha de Casimiro de Abreu, provocava-me – como diria Marcos Rey – “aversões glandulares”. E os simbolistas então? Não eram muitos, se bem me lembro, eram dois os pentelhos, que valiam por todo um exército: Alphonsus de Guimarães e Cruz e Sousa, esse último autor do pegajoso Broquéis, ah, esse cara era – e continua sendo… como pode? – um verdadeiro castigo para um garoto de dezesseis anos. Depois vinham os parnasianos, ah, Fagundes Varela, como você encheu meu saco! Ah, Olavo Bilac, eu o entendo… e até já ouvi estrelas.
"Amai para entendê-las:
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas".
O problema é que o céu anda meio embaçado pro lado de quem tenta ouvir astros e estrelas,e o amor está fora de cogitação. O Funk atropela.No Complexo do Alemão, por exemplo, debaixo de uma Via Láctea cravejada de balas, é impossível ouvir qualquer coisa diferente dos “bondes” locais. Coitado do Bilac. Ele vem capengando desde o tempo em que se ensinava Educação Moral e Cívica nas salas de aula. Isso vale para todo um currículo xarope e equivocado que as escolas – ainda hoje! – insistem em atulhar nos hormônios da garotada… Cazzo!Por causa desses caras, Sinhá Barbina continua recostada no fogão à lenha. Vou dizer uma coisa, e é sério. Em 1986, me meti numa bosta de uma faculdade de agronomia para nunca mais ter de ouvir falar em Alphonsus de Guimarães e Cruz e Sousa. Se, naquela época, alguém tivesse me avisado que Cesare Pavese existia, e que havia escrito um livro lindo, cujo título é O diabo nas colinas… bem, aí as coisas teriam sido muito diferentes. Talvez eu fosse um engenheiro agrônomo.
Rodoviária de Birigui, cinco e quinze da manhã
O próximo ônibus encostaria às seis horas. Um vulto cambaleante, e que era mesmo um fantasma, queria saber onde havia um boteco aberto nas proximidades, eu lhe disse que estávamos na rodoviária de Birigui, perto de Araçatuba. Então ele me disse: “Shit”. Em seguida, deu-me a primeira dica: “The youth first”. Cazzo! Era o velho Buk, perdido na rodoviária de Birigui!
Vou traduzir livremente o que ele falou na seqüência: “Se você quiser enterrar o Pedro Bial forever nos quintos do Jardim Botânico, basta lembrar dos seus tempos na escola … all right, man? Você sabe que os caras mentiram pra você…Pensa no seguinte. A essa hora um Dostoiévski pode estar acordando lá no Jardim Casqueiro, daqui a pouco ele vai pra escola”. O velho Buk me provocava: “Você tem que dar a ficha pro garoto… ‘he nets to know that’”.
A equação que o fantasma beberrão me propunha era trivial: adolescência + hormônios = tesão. Em outras palavras: “Iracema, a virgem dos lábios de mel” nunca foi exatamente um tesão de leitura. Quem é que não sabe que Bukowski é – no mínimo – “mais indicado” que um José de Alencar aos dezesseis anos?
Eu prometi que começaria por Factótum… seria o primeiro livro da minha grade curricular, com extensão obrigatória no bar da esquina: Bilhar 1 e Bilhar 2 … e então o velho Buk soltou um arroto, e antes de sumir, disse: “Ok,você entendeu.Se cuida, e diz pra Sinhá Barbina enfiar o bolo de fubá no rabo”.
Em seguida, na minha grade curricular, seria a vez de Henry Miller incendiar a garotada com Dias em Clichy. Depois as crônicas de Nelson Rodrigues, A menina sem estrela, A cabra vadia, O reacionário, todos os volumes de crônicas, e seu romance, O casamento (o teatro, não – de jeito nenhum). Um único livro de John Fante, Pergunte ao pó, e muito Carlinhos Oliveira, para desopilar. Ana Cristina César para as putinhas ilustradas. Caio Fernando Abreu pras bichinhas esotéricas. E Hilda Hilst pras bichinhas inteligentes. Diana caçadora, de Márcia Denser, para os vampiros em geral.
Aí lembrei das biografias. Não é um gênero que eu aprecio, inclusive acho um desrespeito com o falecido, uma interferência desnecessária, mesmo assim biografias seriam legais pra garotada, a começar pela biografia de Ana C., escrita por Ítalo Moriconi, e a biografia de Carlinhos Oliveira, escrita por Jason Tércio, por exemplo. Até Ruy Castro que é um jornalista convincente (jamais vai ser escritor…) quebraria um grande galho com seus livros que tratam de Bossa Nova. Um pouco de Bataille junto com Cioran faria um estrago legal e irreversível no espírito da garotada… mas só um pouco, é bom não abusar demais aos dezesseis. Digamos A história do olho, de Bataille, e o Breviário da decomposição, do escritor do romeno (será? acho que não…) Esqueçam Cioran, esse autor só depois dos quarenta. Vamos em frente: Marquês de Sade poderia ser uma boa distração. Cortázar, sim. Jorge Luis Borges, não. Borges somente depois dos trinta. Machado idem. Kafka ibidem. Ah, lembrei do George Orwell, nada de A revolução dos bichos… isso já encheu o saco. Talvez o instigante Ensaio dentro da baleia e Na pior em Paris e Londres, esses dois livros seriam mais do que o suficiente aos dezesseis. Graciliano Ramos, não.Ou melhor, somente Angústia do Graciliano, penso que Vidas Secas é um livro meio chato pra molecada.
Raquel de Queiroz me deixa indeciso, mas ela escreveu ótimas crônicas no Estadão: portanto, as crônicas da Raquel, os romances, não.O ventre, do Cony. De Dostoiévski apenas Memórias do subsolo… que é fininho e tem quase tudo lá dentro, nesse livro o leitor encontra os Irmãos Karamazov, Crime e Castigo e O jogador também, está tudo lá. O que mais? Um autor uruguaio palatável e comovente ao mesmo tempo, que é o Mario Benedetti, e um húngaro instigante aos dezesseis: Sandór Marai, com o seu As brasas.
Claro, que eu não ia esquecer os grandes lugares-comuns: The catcher in the rye e On the road essa dupla é impagável, Salinger & Kerouac são inevitáveis e absolutamente necessários aos dezesseis, e em qualquer idade… Jorge Amado nem com onze anos: é muito ruim, parece aqueles textos-redação que tive de ler no Mapa Cultural. Aliás, lendo Jubiaba, percebi que muitos daqueles soníferos escritos pelos candidatos a escritor foram tirados de lá, esqueçam Jorge Amado aos dezesseis. Talvez na primeira infância, e olhe lá. Mas os adolescentes não poderiam deixar de ler Kawabata, A casa das belas adormecidas e Tanizaki também. Desse segundo japa, sugiro A chave e Diário de um velho louco.Dos contemporâneos, os meus amigos Marcio Américo, e seu Meninos de Kichute, que é imprescindível, as crônicas do Gutemberg Blues, do Marião Bortolotto, e Juliano Garcia Pessanha que, igualmente, escreveu um livro fundamental, Certeza do agora… acredito que a molecada se interessaria por Thomas Bernhardt e Hermann Brock depois de ler o livro do Juliano Pessanha (embora Bernhadt e Brock sejam muita areia pro caminhãozinho aos dezesseis…) mas que se dane, que esse interesse despertasse vinte anos depois,porque um livro leva a outro, e isso não tem fim. Apenas não podemos substituir Luiza Brunet por Machado de Assis, aos dezesseis não, e… pensando bem, muito menos no meu caso, às vésperas de completar 42 anos. Luiza Brunet continua linda, apesar da espreita invejosa e nefasta da Sinhá Barbina.
**Caros,
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*Marcelo Mirisola, 41, é paulistano, autor de O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros. Publica em revistas, sites e jornais de todo país. No prelo, Proibidão (Editora Demônio Negro).
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