Os melhores momentos foram aqueles em que o Alter ego entregava-se desbragadamente para a mulher amada, sem pudores. E eu, trôpego, mágico, premido de um amor que jamais poderia chegar a qualquer lugar, ia junto. Esse lugar não era exatamente “qualquer lugar”, mas Buenos Aires.
Porque no La Biela acreditávamos em solos de bandonéon – incluo a mulher amada, eu e meus sôfregos desdobramentos – e também acenávamos pros fantasmas de Bioy Casares e JLB. Não havia outro jeito, somente assim é que éramos eternos e impossíveis.
Mas isso é literatura, e vários escritores tão sórdidos quanto – ou mais sórdidos que esse que vos escreve – usaram do mesmo artifício (decerto foram menos derramados), e se deram muito bem. Exemplos não faltam. A Lolita que enfeitiçou Humbert Humbert,do incomparável Nabokov. Lembram o começo desse romance?: “A ponta da língua fazendo uma viagem de três passos pelo céu da boca,a fim de bater de leve, no terceiro, de encontro aos dentes. LO.LI.TA… Era LO,apenas LO, pela manhã,com suas meias curtas e seu metro e quarenta e oito centímetros de altura…”.
Um demônio de 1,48m ,digo, apenas uma menina de doze anos que destruiu o pobre Humbert Humbert. Qual mulher não quis ser Lolita? Sem sacanagem. Não estou falando de voltar aos doze anos de idade. A questão é: que mulher não gostaria de ter um homem de quatro em qualquer idade? Ou não quis ser Beatriz? Aquela, do Chico & Edu Lobo, que chorava num quarto de hotel, e que em determinado momento os ensinaria a não andar com os pés no chão. Justo eles,Chico & Edu Lobo, queriam que ela os ensinasse a voar. Tá.
A pergunta é: Qual mulher não quis ser a Luiza de Tom Jobim? Aquela que tinha a felicidade de ter os mesmos desejos dele. Num arroubo desesperado, o autor pede a Luiza que o exorcize. O que Tom Jobim quis dizer com “Vem, me exorciza” senão “venha, eu sou seu, mas preciso me livrar de mim mesmo”. Bonito,né?
São tantas odes, canções, romances e tantos, tantos homens aos pés de tantas mulheres ao longo do tempo e da história … desde a desavisada Jocasta, passando por Maria Schneider untando e besuntando as ideias do Marlon Brando, até a bela arquiteta que teve o mesmo Chico aos seus pés num final de tarde na praia do Leblon. São tantas que eu levaria duas colunas no Congresso em Foco para lembrar de uma ínfima parte, e ainda esqueceria de falar da “Noemi” do Tanizaki. Ah, Noemi, a maior declaração de amor da literatura de todos os tempos. Enfim, isso tudo para dizer que a ficção é generosa mas – felizmente – não combina com a realidade. Aliás, atrapalha a realidade.
O que as mulheres querem? Creio que nenhuma mulher quer um pamonha aos seus pés. Ontem à noite, por exemplo. Eu andava meio que triste e envergonhado da minha solidão, e lembrei da Cacá. Ela que, segundo nosso amigo Miguel do Rosário, está namorando um black power. Já disse numa outra oportunidade que entendia o porquê. Ela não me esqueceu. Sim, porque, se tivesse arrumado um japonês, eu duvidaria do nosso amor. E depois da Cacá, Carol veio de Brasília e trouxe uma noite de blues escarlate para mim – linda, linda Carol. Também teve a Carmem que me serviu uma poção mágica na extinta Drinqueria Maldita, lá em Botafogo. E a Ana P. que – consta nos autos – virou executiva mas não deve ter conseguido se livrar do esgar diabólico, espero que não. O lábio dela sorria de um só lado, e pedia – ao mesmo tempo – formação de quadrilha e beijo na boca. Ana P. não tinha nada de dissimulada, era a anti-capitu. Daí vinha sua elegância. Depois dela, quase mais ninguém. O blues escarlate é título de um livro do Carlaccio – parece que foi escrito pra Carol. Um beijo Yve, Ivone, Ritinha Medusa.
Como eu dizia, havia sido expulso da minha própria solidão e os bares do Rio de Janeiro haviam armado um complô paulista contra mim até que a Lu apareceu para passar algumas horas comigo, subiu na garupa de um motoqueiro e se escafedeu.
Cais, saveiros, partidas. Mulheres. Quantos seios que ficaram em nossas mãos e que trocamos por garrafas de uísque de procedência duvidosa. Sua benção, Martinho da Vila. Teve aquela que tirou o Toquinho da escuridão e fez carnaval na vida dele e a outra do Jorge Ben que apareceu de branco na chuva, e rodou, rodou, as mulheres – engraçado – são mais criveis em dias de chuva. E a mais bela, para mim, veio (aliás, não veio) em forma de samba. Estou falando da mais bela e devastadora de todas as mulheres. Talvez até mais cruel que a Noemi do Tanizaki.
Ela é a cabrocha que abandonou o amigo do Charlie Brown e o fez chorar na avenida. Bem, aqui faço um parêntese. Vou falar de Benito di Paula. Não sei o que acontece com esse cara. Para mim, Benito di Paula é um dos maiores letristas da MPB, mas desde sempre a figura dele atrapalhou: brega porém inofensivo, muito diferente da breguice furiosa de um Carlos Imperial ou da breguice pornográfica de um Wando, por exemplo. A cafonice (ou breguice, tanto faz) de Benito di Paula nunca foi (ou é) agressiva, mas o contrário; desperta uma melancolia de salão de beleza com aluguel atrasado. Triste. Uma breguice melancólica. De quem esteve condenado aos anos setenta desde o ventre da mãe e para sempre. Ele é o clássico de um puteiro que não existe mais. Sei lá, só sei que a figura dele atrapalha.
A incompatibilidade é tão grande e o desacordo tão gritante com seu talento, que não é imperdoável o fato de ele, Benito di Paula, ter escrito “Retalhos de Cetim” (só podia ter saído dele …) mas chega a ser quase inconcebível que Chico Buarque não seja o autor dessa música. Que, sem exagero, é um compêndio de todas as histórias de amor que foram e serão vividas e cantadas, todas as Beth Blue e Heloisas estão ali, aquelas que o levariam capado pro túmulo e o perseguiriam em elevadores panorâmicos e em qualquer outra dimensão, todas as malucas e também as putinhas tristes, todas as mulheres que largaram do Vinicius e mais as Carolinas distraídas, tanto faz a época e a circunstância, seja ao piano,em prosa ou feito poesia. Não consigo encontrar um termo mais adequado que “dilaceramento” para falar dessa música. Uma obra-prima. E o mais curioso e intrigante: somente Benito di Paula, do jeito dele todo errado é que poderia interpretá-la. Ninguém mais.
Ensaiei meu samba o ano inteiro
Comprei surdo e tamborim
Gastei tudo em fantasia
Era só o que eu queria
E ela jurou desfilar pra mim
Minha escola estava tão bonita
Era tudo o que eu queria ver
Em retalhos de cetim
Eu dormi o ano inteiro
E ela jurou desfilar pra mim
Mas chegou o carnaval
E ela não desfilou
Eu chorei na avenida, eu chorei
Não pensei que mentia a cabrocha
que eu tanto amei
Enfim. Eu até chafrurdaria estrofe por estrofe, iria me armar de surdo e tamborim e gastaria tudo em fantasia, como sempre … mas acho que não quero ir tão longe.
Não, eu não agüentaria, não vou chorar na avenida pela cabrocha que mentiu para mim e que eu tanto amei, não vou fazer isso aqui – outra vez não.
Mas, agora, quem quiser conferir minha versão de “Retalhos de Cetim” pode ir até o site da livraria Cultura e baixar via Kindle o “Joana a Contragosto” (a capa virtual é gentileza do meu grande chapa Caco Galhardo):
Também na Saraiva:
Ah, eu chorei na avenida, eu chorei…