O centenário da participação de Ruy Barbosa na Conferência Internacional de Paz em Haia na Holanda (1907-2007) suscita algumas reflexões sobre a contribuição e o engajamento de intelectuais brasileiros na cena pública, tanto da área diplomática como acadêmica, nas questões envolvendo direitos humanos e multiculturalismo.
Meu bom amigo Ítalo Moriconi, professor, crítico e poeta da UERJ, no Rio, viajando para a Holanda em pleno Carnaval carioca, conta que está indo para a Universidade de Leiden participar de um simpósio em homenagem a Ruy Barbosa, evento que também comemora os dez anos da Cátedra de Estudos Brasileiros naquela universidade, a ser rebatizada Cátedra Ruy Barbosa, ocupada anualmente durante três meses letivos por um professor brasileiro, cada ano de uma área diferente, como Literatura, História, Economia, Antropologia.
Segundo Moriconi: “Desde Haia, com Ruy, o Brasil se notabiliza pela defesa de uma ordem jurídica internacional em termos de igualdade dos povos e nações. Isso hoje se traduz pelo multilateralismo, o que significa que as decisões internacionais hoje são tomadas multilateralmente pelos vários países envolvidos, sob a égide da ONU, entidade que o Brasil fortalece e apóia. Infelizmente a maior potência do planeta, sob a presidência Bush, tem atuado de maneira unilateral e segundo lógicas de guerra”.
Essa opinião também é partilhada por outro amigo querido, José Augusto Lindgren Alves, embaixador brasileiro em Budapeste, Hungria, que, aliás, também neste Carnaval se deslocou para Genebra a fim de cumprir programação de três semanas como membro do Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial-CERD da ONU. Diplomata de carreira, Lindgren é especialista em direitos humanos, autor de textos importantes sobre o tema .
Ele escreve: “Os direitos humanos se tornaram tema global, sendo ‘universalizados’ pela Conferência de Viena em 1993, onde o Brasil teve um papel extraordinário, pois coordenou toda a negociação do texto final. Mas desde então, a globalização sem controle, de um lado, e as políticas anti-terroristas, de outro, estão literalmente destruindo os direitos humanos, como direitos e como utopia. No Brasil, os desequilíbrios sociais e a criminalidade avassaladora simplesmente impedem que eles sejam exercidos.”
Referindo-se ao ensaio “Excessos do culturalismo: pós-modernidade ou americanização da esquerda?”, Lindgren observa que a “cultura” ganhou uma nova semântica a partir da adoção dos cultural studies nas universidades norte-americanas, destronando a velha sociologia, uma vez que se ajustavam admiravelmente às características do sistema sócio-econômico ianque, incluindo seu conceito e práticas de relações raciais. Advindos do movimento negro pelos direitos civis de 50/60, expandidos com o feminismo em 70, os cultural studies incorporaram-se à esquerda acadêmica, que se pretendia radical, substituindo a noção de classe por novas categorizações identitárias de grupos oprimidos como negros, mulheres, índios, gays e lésbicas, e estas novas categorias excluíam os pobres!”.
Como se não fosse absurdo para um sistema que privilegia o econômico suprimir seu próprio conteúdo! “O corte social dos proletários, dos explorados de todas as maneiras, dos marginalizados e excluídos do mercado, soava a marxismo totalizante e repressor perante as novas configurações sub e supranacionais pós-modernas, estas sim consideradas emancipatórias, conquanto eliminassem a categoria de classe social a pretexto de que esta ocultaria as repressões de natureza “cultural” que esmagavam o indivíduo numa ótica não-economicista”.
Ou por outra – e agora o texto é meu – libera-se culturalmente o neguinho pra fazer sua macumba, djirad, programa de índio, virar polígamo, viado, lésbica, tiete do Padre Marcelo Rossi, enfim libera geral menos a grana, isto é, os meios para o neguinho instrumentalizar-se a fim de ganhar dinheiro, tipo educação, assistência médica, emprego, etc. Aí é o caso de perguntar, liberdade sim, mas para quê? O buraco continua no mesmo lugar, ou seja, em baixo, mas parece que a função principal desse culturalismo de fachada, dessa ideologia de rico, é deslocar continuamente o problema para outro lugar cada vez mais distante da solução óbvia. Por exemplo, o ardor com que a classe média é insuflada a se engajar na luta antitabagista babaco-militante, como se essa fosse a questão crucial e central da nossa época, também funciona como uma das tantas estratégias de despistamento e evasão neoliberais, não passando de bobagem camuflada de álibi moral-sanitário que pretende – e o absurdo é que quase consegue! – tampar o abismo de horror e exclusão e desemprego estrutural para onde estamos sendo empurrados. Repito, num contexto dominado pela economia de mercado o conflito central é entre pobres e ricos, metam isso no, digamos, miolo.
Retornando ao texto de Lindgren, este considera que “num mundo em que a noção de direitos humanos, universalizados pela ONU, deveria inspirar as lutas sociais com um poder de persuasão mais forte do que as ditas ultrapassadas “metanarrativas” (Lyotard), todos os que se empenham na luta contra a discriminação se tornaram mais ou menos “multiculturalistas”. Mas como o multiculturalismo de modelo anglo-saxão é predominante no mundo, ele se insere sub-repticiamente e influencia as posições dos organismos multilaterais, como o próprio CERD na ONU, implicando exigências que são diferencialistas. Foi esse tipo de diferencialismo acrítico que levou o Comitê a cogitar (felizmente sem o fazer) de recomendar à Tanzânia o ensino gratuito de todas as “línguas étnicas”, enquanto aquele Estado africano, paupérrimo e cheio de forças desagregadoras, esforça-se por ensinar kiswahili como língua nacional projetada, esperando algum dia superar suas divisões étnicas, religiosas e raciais. Foi o diferencialismo multiculturalista que levou o CERD a ter dúvidas quanto à opção zambiana pelo inglês como língua oficial, assim como insistir com Cabo Verde para disseminar o ensino do crioulo como língua nacional, quando o país, desde os tempos da luta anticolonialista de Amílcar Cabral, optara pelo português, assim como Eduardo Mondlane e Samora Machel o fizeram em Moçambique e Agostinho Neto, em Angola. Nesse diferencialismo também se enquadram as sugestões irrealistas para que o Suriname, em 2004, assolado por sérias dificuldades, assegurasse escolas em línguas locais, além do holandês oficial, aos indígenas e negros habitantes das florestas (Com que dinheiro? Com que professores? Em benefício de quem? Para quê).”
“A cultura em que vivemos no Brasil e outros países congêneres pode ser globalizante, pós-moderna e multiculturalista, mas não precisa ser anglo-saxã, canadense, australiana ou simplesmente “americana”. Por que numa sociedade miscigenada como a brasileira – e isto é uma virtude – seríamos diferencialistas? Por que não podemos aceitar que somos miscigenados desde que Cabral cá deixou alguns poucos desterrados em contato com as nativas? Se isso não ocorreu com os pilgrims, os puritanos ingleses, os reformadores holandeses e os calvinistas franceses, o problema não é nosso”.
“No Brasil e países similares como Cabo Verde, Angola, Venezuela, Cuba, rejeitar a mestiçagem como espúria é assumir um diferencialismo inútil, fundamentalista e nocivo, por isso mesmo racista. Negá-la como remédio contra o preconceito é negar um fato, o único que talvez realmente evite, em tempos de multiculturalismo, o etnocentrismo de todos. Entender que a mestiçagem representa apenas uma ânsia de branqueamento servil para ascender socialmente é não entender que o multiculturalismo criativo não é aquele que isola, mas, sim, aquele que integra.”
Como vêem, desde Ruy, cem anos de multiculturalismo criativo nos contemplam, uma vez que na cena mundial persiste o engajamento dos brasileiros na luta pela igualdade e soberania de todos os estados do planeta. Mas ainda voltaremos a Ruy e sua revisão pós-moderna.
[1] Alves, José A. Lindgren. Os Direitos Humanos na Pós-Modernidade e Os Direitos Humanos como Tema Global, ambos editados pela Perspectiva em 2005 e 2003, respectivamente.