Não apenas inusitada e divertida, pelo impagável dueto do deputado Tiririca (PR-SP) com o senador Eduardo Suplicy (PT-SP), a festa deste ano do Prêmio Congresso em Foco, numa camada mais profunda de leitura, acabou por ser emocionante. O resultado final da premiação tornou-se uma demonstração eloquente das profundas transformações dos últimos anos, que vão tornando o Brasil mais maduro como democracia representativa. Transformações que se pavimentaram após a chegada de Luiz Inácio Lula da Silva ao poder. Algumas por méritos dele. Outras, que ele não planejou ou sequer tenha imaginado. E outras, ainda, inteiramente contra a sua vontade, como o resultado do julgamento do mensalão.
Quando o Brasil começou a fazer seus primeiros ensaios para brincar de democracia, no século XIX, no reinado de Dom Pedro II, o direito de voto era vinculado à renda: só podia votar quem comprovava ter uma determinada quantidade de bens e dinheiro. Analfabetos – que, então, eram talvez a maioria da população – também não votavam. Por conta da abjeta escravidão, a população negra sequer era considerada cidadã, despojada de qualquer direito. Era, portanto, uma brincadeira restrita à elite brasileira. E assim permaneceu por um bom tempo. A amplificação desse direito foi se dando a conta-gotas – e com as terríveis interrupções para os períodos de ditadura com Getúlio Vargas e com os militares. Somente após a Constituição de 1988, os analfabetos tiveram direito a voto.
Assim, o Brasil foi se acostumando a se fazer representar pela elite. As minorias, se quisessem alguma voz, que tivessem a sorte de encontrar na elite alguém mais sensível que se lembrasse de vez em quando delas. O que se viu na noite da quinta-feira, 8 de novembro, em Brasília, na festa do Prêmio Congresso em Foco, foi a celebração, sem as formalidades de paletó e gravata do Congresso Nacional, do momento em que a população brasileira começa a conseguir escolher integrantes dela mesma para se fazer representar. As elites, é claro, têm os seus representantes, mas mais circunscritos ao seu próprio extrato. E lá estão também os semi-alfabetizados, os artistas de circo, os gays, os evangélicos, etc.
Mas celebrando juntos aqueles que respeitam a democracia. E que, por respeitarem a democracia, respeitam uns aos outros. Por isso sábia a decisão de evitar que fossem escolhidos para os prêmios aqueles que agridem os direitos humanos, por defenderem coisas como trabalho escravo ou a homofobia. Quem não respeita a diferença, não é democrático. Quem não é democrático, não pode pretender disputar menção como bom parlamentar.
E se disse lá em cima que essa mola foi impulsionada pela eleição de Lula, porque foi ali que o eleitor brasileiro livrou-se dos pudores daquilo que Nelson Rodrigues batizou de “complexo de vira-lata”. Uma excessiva, quase irritante, humildade, de se julgar inferior, de achar que não tem capacidade para lidar ele mesmo com seus problemas e encontrar ele mesmo as soluções. O brasileiro identificou-se em Lula e, a partir daí, começou a construir o seu país. E nem sempre da forma como o próprio Lula gostaria.
A passagem de Tiririca pela cerimônia do prêmio foi emblemática. Ele roubou a festa. Desde que chegou vestindo uma camisa branca para fora das calças jeans. Sem as exigências regimentais da Câmara, ele começou, com a escolha da roupa, a ser ele mesmo. E a ser grande parte do povo brasileiro, que não anda de paletó e gravata. E continuou sendo autêntico, ao subir no palco para fazer o que sabe: cantar a sua Florentina.
Tiririca dá um nó na cabeça da elite. Ele virou deputado como consequência de um golpe matreiro e comum dessa elite: escolher uma celebridade que, com sua votação, puxasse a eleição das velhas raposas. E, de fato, ele ajudou a eleger o hoje condenado Valdemar Costa Neto (PR-SP). O problema é que Tiririca não aceitou o papel que a elite esperava que ele tivesse, sumindo obscuro no Parlamento depois de cumprida a tarefa que ela lhe confiara. O palhaço Tiririca entendeu a seriedade da função para a qual fora escolhido. Não falta às sessões. Escolheu um nicho para representar – os artistas de circo – e trabalha com eficiência e afinco por ele.
E, como melhor deputado escolhido na votação entre os internautas, outra “celebridade”: o ex-BBB Jean Wyllys. Primeiro representante declarado da comunidade gay brasileira. Jean não quer ter mais direitos que os outros: ele quer que homossexuais como ele tenham os mesmos direitos que todos. Não atua apenas para os homossexuais: amplia sua atuação para a defesa dos direitos humanos de um modo geral, porque sabe que a sua luta é a mesma dos negros, dos índios, dos trabalhadores que vivem em condições análogas à escravidão. E é por isso que os setores da extrema direita reagem tão violentamente a ele. Não por ele ser gay, mas por ele ser uma demonstração de que o país avança inexoravelmente para se livrar definitivamente das marcas dos coturnos verde-oliva, das suas ordens e dos seus preconceitos. Caminho sem volta.
Agora, a sociedade começa a escolher seus representantes sem intermediários não para que eles lá repitam os mesmos vícios e práticas da velha elite política. Por isso é que faz parte do mesmo processo de maturidade democrática a condenação dos que praticaram corrupção no julgamento do mensalão. Essa é a parte do avanço que também acontece como consequência de Lula, embora à sua revelia.