Ser solidário é oferecer o pescoço ao sacrifício. Se for o caso, contrariar os próprios interesses em favor do injustiçado. A mesma lógica que funciona para quem dá sem esperar algo em troca – por desapego. E mais, sem esperar reconhecimento e/ou retribuição: uma vez que a solidariedade é mais do que um gesto, pois se trata de doação. E a doação não aufere pesos nem medidas: mesmo porque o injustiçado pode ser um canalha e a justiça pode se revelar uma injustiça cabeluda.
Tem mais. Não julgar sob hipótese alguma. Sobretudo aquele que é incapaz de agir da mesma forma que você (porque existe a grande possibilidade de que você também esteja errado …) portanto, ser solidário é encarar o cuspe como se fosse o beijo e vice-versa. A partir daqui, em tese, subiríamos um degrau. Vamos falar de compaixão. Que nasce da solidariedade gratuita: o tipo de sentimento que jamais ameaça ou condena, apesar de todos os pesares. Algo que se compartilha de igual para igual, nem de cima para baixo nem de baixo para cima. Daí brota o perdão, quase que despercebido. Nem precisa ser nomeado.
Até esse ponto, bem, eu suspeito que até esse ponto ainda somos humanos. Mais do que isso é andar sobre as águas, levitar, criar asas e, na sequência, invariavelmente cagar regras e guilhotina. Não tenho essa pretensão. Isso aqui é apenas uma crônica.
Ou melhor, devia ser uma crônica que tratasse exclusivamente do perdão incondicional. O problema é que, na prática, o futuro do pretérito é um verbo meio capenga e traiçoeiro. O meu preferido, diga-se de passagem.
Na prática, como diria H.L.Mencken atualizando Francisco de Assis, é bem melhor dar do que receber – sobretudo se for presente de casamento. Se você gosta de apanhar, é obvio que é melhor dar o lombo ao relho, e, se você é do tipo que não consegue perder a piada, esqueça a santidade. Lamento dizer, mas o assunto é serio. Remete a Deus, religião, esses trecos. Tanto que eu fico aqui espremendo os miolos para lembrar de alguma passagem engraçada no evangelho, e só encontro ameaças e gente culpada e/ou resignada com a própria desgraça, maldição e insignificância.
E aí, sinto o crepitar das labaredas do inferno, e me ocorre um pensamento proibido: afinal, não será a bíblia um livro de anedotas, um manual de humor sádico?
A sugestão divina não seria outra?
Abro o “livro dos livros” aleatoriamente. Vejamos. Coríntios 11:23. Imaginem um apóstolo ou um bispo(a) desses que lotam estádios de futebol. Imaginem o fulano supostamente ungido por Deus a reproduzir ipsis litteris o que está escrito na bíblia, pois esse é o argumento que eles usam para não ser processados: “Está lá na bíblia. Não fui eu quem disse, portanto, se vocês quiserem processar, processem Deus”.
Pois bem. Em Coríntios ( página aberta ao acaso) o evangelho diz que a mulher deve cobrir-se porque ela é a glória do homem: “Toda mulher que orar ou profetizar com a sua cabeça descoberta envergonha sua cabeça, pois é como se fosse (mulher) de cabeça rapada. Porque, se a mulher não se cobrir, seja também tosquiada; mas, se é ignomioso para a mulher ser tosquiada ou rapada, que se cubra” ….
Percebem a margem industrial não só de escárnio, mas de intolerância, ódio generalizado e o diabo a quatro que esse versículo encerra? A bíblia inteira, com raras passagens iluminadas, é assim. Quando não é infinitamente mais nefasta e aberta a interpretações canhestras e perigosíssimas. Abram em qualquer página, façam o teste e depois me digam. Eu não tenho estômago para mais citações.
Mulheres rapadas, tosquiadas e descobertas, eu queria saber de vocês: dá pra levar a sério esse livro? Tem gente que paga carnê pro bispo e inferniza a vida do vizinho e do cônjuge por conta de uma idiotice dessas. Tem gente que é curada de câncer e deixa de ir ao médico por causa da bíblia. Tem mulher que se embaranga, tem gente que abandona os amigos e sacrifica o tesão em nome desse livro ditado por Deus e escrito pelo diabo (ou pelos homens, tanto faz).
Tanto Dilma como Serra pagaram pau e pediram a benção para esses bispos, pastores,carolas e dementes em geral que se guiam por esse livro. Incrível. A nação neo-evangélica se multiplica e enriquece, e as estimativas são assustadoras. Portanto, você que gosta de uma putaria, aproveite agora. Em pouco tempo, o Brasil todo estará mergulhado e encalacrado nessa escuridão medieval e sem retorno. Nunca mais drinque no dancing.
Aí eu me pergunto: E a compaixão? E a solidariedade ? E o humor?
Falando nisso, lembrei do meu amigo Paulo Stocker. Ele projetou um modelito de mini-burca para o nosso clima tropical e sombrio.
Viram? Muito bom esse Stocker. Mas infelizmente essa moda não vai pegar. Sabem por quê?
Porque a bíblia, apesar de eu não ter mais estômago, prossegue mal-humorada, implacável (e pessimamente escrita, aliás). Mais um pouco de Coríntios e eu paro, juro: “Porque o homem não procede da mulher, mas a mulher do homem e ainda mais, o homem não foi criado por causa da mulher, mas a mulher por causa do homem, é por isso que a mulher deve ter um sinal de autoridade sobre sua cabeça, por causa dos anjos” .
Só se for dos anjos dos infernos. Autoridade de quem? Talvez estejamos falando em nome daqueles que … apedrejam em nome de Deus? De quem quer controlar (ou manipular) o útero das mulheres como se fossem cabras e vacas parideiras? Dos padres pedófilos que defendem … a vida? Do trofeuzinho que o afetadíssimo e vingativo padre Marcelo ganhou do Papa? A vida de quem? Dos coroinhas? Cambada de tarados, fanáticos, cascateiros, manipuladores, alucinados.
Para mim, o fardo da culpa, da blasfêmia e do crime. Tudo bem, eu encaro – e até consigo tirar um tesão desse treco. E para essa gente que grita o nome de Deus em vão e que me condena, meu perdão incondicional. Esse mesmo que adquiri logo no começo da crônica. Será que eles vão aceitar?