O desrespeito às decisões judiciais não abusivas (não desproporcionais) significa o desmoronamento do Estado de direito e da nação. “A única forma de atividade pública que, no presente, satisfaz cada classe, é a imposição imediata de sua “soberana” vontade, em suma, sua ação direta” (Ortega y Gasset, España invertebrada).
No dia 4 de junho, os metroviários de São Paulo decidiram entrar em greve. Querem aumento de, no mínimo, 10%. O Metrô ofereceu 8,7% e o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) já deferiu esse aumento (a inflação desde o último aumento da categoria foi de 5,8%). A greve foi considerada abusiva pelo TRT (porque não atendia o público nos horários de pico). Punições: R$ 500 mil para cada dia em greve depois do julgamento e R$ 100 mil para cada dia antes do julgamento. Na segunda-feira (9) começaram as demissões (60 pessoas), por justa causa. É direito de todas as classes sociais lutarem pela melhoria de salários. Mas desde o momento em que existe decisão judicial não abusiva (não desproporcional), de duas uma: ou se recorre e consegue efeito suspensivo do que foi determinado ou se cumpre.
Seguindo a linha de pensamento do filósofo espanhol Ortega y Gasset (1883-1955), merecem nossas reflexões (e observações) as seguintes passagens do seu livro (España invertebrada): “O particularismo produz a ilusão intelectual de acreditar que as demais classes não existem como plenas realidades sociais ou que não existem” [nas sociedades de massas atuamos cada vez mais isoladamente; as classes sociais não reconhecem as demais ou acreditam que não dependem das mais; cada uma atua de acordo com seus particularismos, ou seja, de acordo com seu ponto de vista, seus interesses, sem considerar as necessidades dos outros; havia liminar determinando aos metroviários que respeitassem o público nos horários de pico; há um mínimo, nos serviços de utilidade pública, que não pode ser negligenciado ou negado; isso não foi feito, daí a ilegalidade da greve].
“Particularismo é o estado de espírito em que cremos não ter que contar com as demais pessoas. Algumas vezes por excessiva autoestima de nós mesmos, outras por excessivo menosprezo do próximo, perdemos a noção de nossos próprios limites e começamos a sentir-nos como todos independentes” [é precisamente isso que se nota na greve dos metroviários, que desconsideraram completamente os usuários do serviço público; nesse ponto, é notória a falta de solidariedade com o público, pelo menos naqueles horários mais agudos].
“Contar com os demais supõe perceber, se não nossa subordinação a eles, pelo menos a mútua dependência e coordenação em que com eles vivemos. Uma nação é uma ingente comunidade de indivíduos e grupos que contam uns com os outros. Este contar com o próximo não implica necessariamente simpatia, sim, respeito” [justamente esse respeito com a população é que faltou na conduta dos metroviários que, ademais, com o descumprimento das decisões judiciais não abusivas, revelam a típica anomia das sociedades de massas, que não se impõem limites nem reconhecem limites externos, como se vivessem em estado de natureza, da guerra de todos contra todos (Hobbes)].
Nas nações civilizadas todos lutam pelos seus interesses legítimos (alguns grupos lutam inclusive por interesses ilegítimos, absurdamente), mas nunca ignoram os outros, porque em conjunto todas as lutas contam com melhores chances de sucesso. Novamente, exemplar é a parábola do estômago: se as demais partes do corpo humano (mãos, boca, dentes etc.) se rebelam e não mandam alimentos para o estômago, claro que o estômago vai sofrer, mas é ele que nutre e dá energia para os demais. Se o estômago falece, todos perecem. Ou seja: viver em sociedade é prestar auxílio mútuo, é respeitar todas as classes, é coordenar os interesses. Não existe nação sustentável onde todas as classes atuam de acordo com seus “particularismos”, olhando exclusivamente para seu próprio umbigo (sem considerar as demais pessoas, com quem têm que conviver).
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