Aqueles que queiram ter uma compreensão menos apaixonada do que começará a ser julgado hoje à tarde no Supremo Tribunal Federal (STF) deveriam perder algum tempo lendo as 338 páginas do memorial sobre o mensalão feito pelo procurador-geral da República, Roberto Gurgel. Aos que pretendem se comportar como torcida organizada, talvez o tempo perdido não valha tanto a pena: já têm posição firmada, independentemente de qualquer coisa. O Congresso em Foco publicou a íntegra do memorial ontem (1). Mas ele pode ser lido de novo aqui.
É claro, trata-se de um memorial feito pela acusação. Neste processo, essa é a posição do Ministério Público, que funciona como promotor no julgamento. Assim, o resumo feito por Roberto Gurgel – sim, com 338 páginas, trata-se de resumo; afinal, o processo do mensalão tem 69 mil páginas – tem o objetivo de reforçar os argumentos da acusação. Mesmo com isso em mente, fica impossível concluir, após a leitura, que não tenha ocorrido algo de muito grave sob o nome de mensalão, como ficou conhecido.
Como até andou reforçando o ex-procurador-geral Antônio Fernando de Souza, é sempre importante se ter em mente que “mensalão”, esse apelido dado pelo ex-deputado Roberto Jefferson ao batizar o que houve, não passa de uma figura de retórica. O Ministério Público não acusa os envolvidos de participar de um esquema que pagava “mesada”, remessas mensais de dinheiro a partidos e políticos. O que a acusação diz é que se formou uma organização criminosa com o propósito de trocar apoio político por dinheiro. E, efetivamente, havia dinheiro, depositado em contas dos bancos Rural e BMG, às quais vários parlamentares e dirigentes partidários recorreram em vários momentos.
Iam às agências dos bancos. Saíam com pacotes ou “pastas do tipo 007” cheias de dinheiro vivo. Recorreram às contas quando precisaram delas.
A auditoria contábil nas contas das empresas do empresário mineiro Marcos Valério de Souza, descrita no memorial, impressiona. Marcos Valério é o principal nome daquilo que a acusação chama de “grupo operacional” do esquema. A Procuradoria-Geral da República divide o esquema em três grupos. O “político” – dos dirigentes do PT – queria uma forma de obter o apoio de outros partidos ao seu projeto de poder. Encontrou essa forma no esquema bolado por Marcos Valério, o tal valerioduto, que ele já tinha feito antes para o PSDB de Eduardo Azeredo em Minas Gerais. O dinheiro, diz a acusação, era garantido pelo “grupo financeiro”, os executivos do Rural e do BMG.
Segundo o memorial, a auditoria contábil encontrou “centenas de milhares” – isso mesmo, “centenas de milhares”! – de notas fiscais falsas emitidas pelas empresas de Valério para forjar a história dos empréstimos feitos ao PT e evitar demonstrar uma relação entre tal dinheiro e o que suas empresas ganhavam com os contratos que tinham com o governo.
Outra auditoria não consegue encontrar relação entre valores repassados pela Visanet, fundo de incentivo do Banco do Brasil, para a DNA Propaganda, empresa de Marcos Valério, e eventuais trabalhos publicitários. Ou seja: indício de que o dinheiro era para abastecer o esquema.
Há bem mais. Simone Vasconcelos, que era gerente financeira de uma das empresas de Marcos Valério, narra em um depoimento que chegou a pedir certa vez um carro-forte para transportar R$ 650 mil (R$ 650 mil!) até um prédio no qual entregaria o dinheiro a pessoas do PL (hoje PR).
E por aí a coisa vai. Enfim, é difícil, após a leitura, considerar que não houve nada. Que tudo não passou de uma invenção. Até porque a “invenção”, forjada por Roberto Jefferson, teria que ser corroborada por dois procuradores-gerais da República que foram escolhidos por Lula, o ex-presidente da República que comanda o PT, principal partido acusado. E o memorial envolve ainda documentos produzidos pela Polícia Federal, pelo Banco Central, pela Controladoria Geral da União, pelo governo dos Estados Unidos … Dá pra acreditar em tenta gente assim envolvida na “farsa”?