Paulo Novais*
ACâmara dos Deputados aprovou, em outubro de 2010, o projeto de Lei 5.798/2009, do Poder Executivo, que cria o Programa de Cultura do Trabalhador, prevendo um vale de R$ 50,00 para o trabalhador utilizá-lo em programas culturais. A Câmara, a contragosto do Governo, incluiu como beneficiários os aposentados e servidores públicos com renda inferior a cinco salários mínimos. O Senado ratificou os benefícios. O projeto retornou à Câmara em virtude de outras emendas apresentadas pelo Senado, situação em que a Câmara, regimental e constitucionalmente, só teria duas alternativas: ou aprovaria as emendas do Senado e enviaria o projeto alterado à sanção, ou rejeitaria as emendas do Senado e enviaria à sanção o texto originalmente aprovado, não podendo mais fazer qualquer supressão.
Ocorre que, no afã de atender à vontade do Executivo, que se impôs contra o texto aprovado soberanamente pelas duas Casas do Congresso, e para sepultar definitivamente o projeto, um grupo de deputados apresentou um projeto de lei com o mesmo objetivo e basicamente com a mesma redação daquele já aprovado, retirando tão somente o que não interessava ao Governo, numa vergonhosa saída antirregimental e inconstitucional, que contou com a condescendência do presidente da Casa.
A saída é antirregimental porque o art. 164, II, do Regimento Interno prevê que o presidente da Câmara deverá declarar prejudicada qualquer proposição acerca da qual já tiver ocorrido deliberação do plenário, sobre a mesma matéria. Isto ocorre em defesa da coerência no processo legislativo, para impedir que a Casa fique votando repetidamente a mesma matéria. Mas, no caso em tela, além de o presidente não ter declarado prejudicada a proposição, ela foi levada a Plenário e votada num curtíssimo prazo de 14 dias (diferentemente do projeto original, que tramita há três anos). Trata-se de procedimento que atenta contra a economia e eficiência do processo, pois a matéria reapresentada e votada deve ser encaminhada novamente ao Senado para nova apreciação, isto se aquela Casa não se recusar a cumprir esse papel de submissão integral à vontade do Executivo e fizer o que regimentalmente a Câmara deveria ter feito: declarar prejudicado o projeto.
É inconstitucional por vício de iniciativa, pois se trata de proposição que cria um programa de governo, atribuindo a gestão desse programa a um ministério específico, competência que é exclusiva do presidente da República, por se tratar de programa de governo e de distribuição de competências a órgão do Executivo; basta verificar o que dispõe o § 1º do art. 61 da Constituição e que o primeiro projeto era de iniciativa do Poder Executivo.
Além disso, a manobra foi realizada escondendo-se a verdadeira face de sua intenção política: de evitar que a presidente da República arcasse com o ônus de vetar o benefício aos servidores públicos e aposentados, e fizesse recair essa conta sobre o Legislativo, à custa da violação do processo legislativo e da afronta à Constituição.
É vergonhoso que a Câmara dos Deputados, a esta altura da democracia brasileira, abdique de suas prerrogativas constitucionais e transforme-se em um longa manus ou mero carimbador das vontades do Executivo, principalmente criando artifícios que ferem o processo legislativo e podem parar no Supremo Tribunal Federal.
Publicidade*Assessor jurídico na Câmara dos Deputados, advogado e autor do livro Regimento Interno Facilitado da Câmara dos Deputados