Nos últimos dias, os governos dos países latino-americanos têm manifestado seu apoio ao estado argentino em sua campanha por sua alegada soberania sobre o arquipélago das Malvinas. Até o sereno secretário geral da OEA, José Insulza, fez uma referência extraoficial ao colonialismo inglês, embora nas declarações oficiais a organização se cinja a louvar o pacifismo da Argentina (vide).
Essa fraternidade é atribuída ao fato de que hoje o estado argentino é democrático, e não neonazista como em 1982. Todavia, o ataque argentino teve a adesão de países democráticos como a Venezuela (que era crítico da barbárie da ditadura austral) e, ao mesmo tempo, sofreu a maior oposição de outra ditadura, a do Chile, que embora menos violenta (3.000 mortos no Chile, contra 30.000 na Argentina), era sua principal sócia na Operação Condor.
As afinidades democráticas não parecem razão suficiente para a fraternidade atual, ainda mais tendo em conta que o Reino Unido, apesar de seu passado imperialista, é atualmente uma democracia capitalista típica. Essa simpatia massiva pode ter outros motivos que o amor pela democracia e a justiça. Por sinal, analisando diversos blogs de países da região, percebe-se que nem todos os autores, nem os leitores que deixam comentários, têm o mesmo amor pela causa argentina que seus governos.
Fora da Argentina, as pessoas se espantam pelo caráter ultrapassado e hiperemocional deste raro conflito. Do ponto de vista do Reino Unido, a insistência em preservar as ilhas é o legado de um passado colonialista, como reconhecem alguns analistas britânicos (vide). Mais surpreendente ainda é a reclamação argentina (mesmo pacífica), que supõe o uso de um direito internacional numa época em que esses direitos não existiam, e a única fonte de decisão era o Papa. Alguns analistas argentinos rejeitam o argumento de que os ingleses, não sendo católicos, não estavam obrigados a obedecer ao Papa, pois dizem que todo o direito colonial se remonta ao Tratado de Tordesilhas, em cuja época a Inglaterra ainda não tinha feito sua reforma religiosa.
Uma visão escolar da história das Malvinas mostra que as ilhas passaram por numerosas mãos (holandesas, francesas, inglesas, espanholas, argentinas), de modo que as atuais reclamações, reconstruídas escolhendo os fatos favoráveis, também serviriam para outros países, se esses escolhessem adequadamente suas “razões”. Basta imaginar como ficaria o planeta se fosse adotado o princípio de reversão temporal da soberania para que as fronteiras voltassem a ser o que eram há 50 anos, ou, mais estranho ainda, se tivéssemos que voltar 179 anos.
Algo mais substantivo é que as propostas de descolonização da ONU de 1960 falam de autodeterminação, e não de mudança de dono. O critério aplicado aos países da África e da Ásia que sofreram o imperialismo europeu foi a independência e não a troca de soberania. Entretanto, há numerosos documentos sobre os quais não se fala (e que podem encontrar-se sem problema na Internet), onde os ilhéus solicitaram várias vezes ao parlamento inglês a plena cidadania britânica, obtida em 1983.
Também constam em dúzias de atas de reuniões bilaterais não secretas as negativas da Argentina para reconhecer a autodeterminação dos malvineses. Diga-se de passagem, as Malvinas têm hoje entre cinco e oito argentinos, nenhum dos quais manifestou repúdio pela soberania britânica. Apenas um ilhéu de origem inglesa se declarou defensor da Argentina e brigou com sua família por causa disso. Mas sempre existem exceções e seria temerário usa-las como regra.
Em resumo: através de argumentos históricos difusos e de direitos não formalizados na época dos fatos, a Casa Rosada reclama a posse de um território que não possui um grupo significativo de argentinos oprimidos por um invasor estrangeiro. Aliás, documentos argentinos dos anos 60, 70 e até 80 chamaram de “invasores ilegítimos” os habitantes das ilhas que pertencem a 6ª geração de malvinenses, cujos bisavós não tinham nascido quando um corsário inglês invadiu as ilhas, em 1833. Trata-se de um critério de punição retroativa e de direito de ancestralidade em todo semelhante ao chamado Blut und Boden (Sangue e Solo) do romantismo alemão, tornado célebre pelo nazismo.
Um dado que não se menciona é que durante os governos trabalhistas, o Reino Unido chegou a propor a soberania compartilhada entre ambos os estados, e até, no governo de James Callaghan (1976-79), que era membro da esquerda de seu partido, ofereceu a rendição de soberania em troca de respeitar os direitos básicos dos ilhéus. Callaghan até concordou em que os malvinenses deveriam aprender o espanhol, mas, apesar disso, a Argentina insistiu em que os habitantes das ilhas não tinham qualquer direito.
Voltando ao começo, nossos hermanos do continente e o grande irmão brasileiro não são tão alheios ao direito internacional, nem ao bom senso. As Malvinas oferecem aos países da região um pretexto para formar um bloco e barganhar diversos direitos (econômicos, políticos, migratórios, etc.) dos países europeus. Aliás, cada um de nossos vizinhos tem diferentes contenciosos para os quais a ajuda da Argentina (o segundo país da América do Sul) poderá ser útil na hora certa. Não está fora da jogada o mercado internacional de armas, cuja probabilidade de vender aviões e outros aparelhos bélicos aumenta em cada conflito.
Para o Brasil, as Malvinas são um prato cheio. O incidente artificial (quais são as provas da presença de armas nucleares na região?) é água benta para os projetos, do ministro Celso Amorim, de criar um bloco de “boa vontade” que incluiria a Argentina. É claro que um governo democrático não empreenderia um ato descabido como o dos militares em 1982. Mas o aumento da tensão pode criar uma confusão onde, finalmente, não se saiba quem acendeu a faísca.
O Reino Unido deve render soberania, e exigir das Nações Unidas que adotem as Ilhas Malvinas como território não autogovernável e garantam proteção completa aos faklanders, inclusive com direito a criar sua própria nacionalidade sem perder a atual. Essa parece a melhor forma de evitar novas “crises nervosas” dos governos argentinos, que surgem cada vez que a Casa Rosada passa por alguma dificuldade. O Reino Unido deve evitar uma nova catástrofe como a de 1982, pois, se ela se repete, não pode ter certeza de que os ilhéus serão poupados.