Carlos Trindade*
Tecendo algumas digressões sobre a história política brasileira e a de outros países, Adam Przeworski apontava três lições que podemos, mais uma vez, utilizar para analisar os desafios que a presidenta Dilma Roussef haverá de encontrar frente à configuração política saída das urnas neste pleito de 2010.
A primeira lição é a de que a estabilidade democrática não é baseada em consensos e sim na maneira pacifica como se processam os conflitos políticos de tempos em tempos. Na segunda, a democracia requer a presença de todas as forças em conflito no âmbito do sistema para que as regras do jogo funcionem. Por fim, a terceira lição chama a atenção para o fato de que a duração da democracia está imbricada à submissão dos interesses de todas as forças políticas ao ritmo ditado pelas instituições democráticas do Estado de Direito.
Se os resultados da disputa institucional geram benefícios de menor escala em relação àqueles que os derrotados nas disputas ocorridas em cada momento histórico poderiam auferir derrubando o arcabouço institucional de sustentação do sistema político, tornam enormes as chances de haver um colapso na vida democrática em qualquer parte do mundo.
O discurso da coligação PSDB/DEM/PPS nas eleições ora encerradas, em muitos momentos reacendeu essa possibilidade de retrocesso político. A vontade de ganhar por parte da coordenação de campanha do José Serra passou raspando no abandono das regras do jogo, o que traria conseqüências imprevisíveis para o país.
A abertura das urnas acalmou os ânimos e possibilitou às partes em litígio realizarem uma analise mais fria dos resultados alcançados. Olhando o mapa eleitoral à distancia, tem-se a impressão de um Brasil dividido entre o sul rico, culto e inteligente e o norte/nordeste pobre e ignorante gerando equívocos e preconceitos em grande parte da população. Na verdade, em cada estado houve milhões de pessoas que votaram contra ou a favor das políticas implantadas pelo governo Lula. A vitória de uma ou outra parte não pode ser explicada pelo recorte regional que muitos se apressam a propagar.
A própria continuidade dos principais programas de governo exigirá da nova presidenta um esforço de diálogo bastante razoável, senão quanto à forma de levar o PAC 2 a estados com o Pará, Minas Gerais, Tocantins, Rondônia, Roraima, Santa Catarina, Rio Grande do Norte, Paraná e São Paulo. As obras e os recursos nela previstos interessam tanto ao governo federal quanto aos governos estaduais.
Por outro lado, pode-se questionar como os novos governadores de Alagoas, Minas Gerais, Pará e Rio Grande do Norte vão administrar os interesses entre os projetos que desejarão tocar a partir de 2011 e os da população que votou majoritariamente em Dilma como sinal de aprovação as políticas do governo federal. Esse é o jogo da democracia a ser jogado entre 2011 e 2014.
No campo majoritário, os resultados das eleições nos mostram o quanto alguns governadores terão que se esforçar para contar com o apoio estratégico dos senadores eleitos em oposição a eles para viabilizar o seu projeto de governo. Cito como exemplo os governadores Téo Vilella (AL) com os senadores Fernando Collor e Renan Calheiros, Ricardo Coutinho(PB) com os senadores Vitalzinho e Wilson Santiago, Beto Richa (PR) com os senadores Roberto Requião e Gleisi Hoffmann, Tarso Genro(RS) com os senadores Pedro Simon e Ana Amélia e Geraldo Alckmin (SP) com os senadores Eduardo e Marta Suplicy.
Mais uma vez, a administração dos interesses prepondera sobre a construção de consensos.
Isso irá ocorrer mesmo nos casos em que os governadores do PT, PMN, PSB e PMDB, alinhados com o governo, tenham que disputar recursos federais de fontes ainda não regulamentadas, tal é o caso do pré-sal.
Na Câmara e no Senado, o esforço para processar os interesses políticos não é menor. No caso desta primeira Casa Legislativa, se fizermos uma divisão das forças do ponto de vista mais ideológico, teremos um grupo de partidos historicamente mais progressistas, tendo a frente o PT junto com o PSB, PDT, PC do B e o PSOL, os quais somam 168 parlamentares; um grupo que denomino como sendo o da governabilidade, situado ao centro e tendo como ícone o PMDB junto com o PR, PMN, PTB, PRB, PV e PSC, os quais somam 184 parlamentares; um terceiro que defende as posições mais conservadoras, tendo a frente o PSDB junto com o DEM, PPS e PP, os quais somam 150 parlamentares e, por fim, os chamados nanicos (PHS, PT do B, PTC, PSL, PRTB e PRP), que perfazem um total de 11 parlamentares. No Senado, o quadro se reproduz tendo o primeiro grupo 25 parlamentares; o segundo, 32 parlamentares e o terceiro, 24 parlamentares. Em suma, mais uma vez, sem essas forças de centro citadas acima, o governo não terá como avançar na aprovação das reformas tão necessárias para o desenvolvimento do país.
Apesar de neófita em processos eleitorais, a presidenta Dilma Roussef vem demonstrando grande capacidade de conduzir o jogo do poder. Acredito que em parte por ela se colocar como pertencente a um projeto coletivo de sociedade e não considerar a sua eleição como decorrência de uma aspiração pessoal.
Antes de ela ocupar o cargo máximo da política brasileira, o PT e Lula passaram por três tentativas consecutivas de chegar à Presidência da Republica. A cada uma delas, o apoio eleitoral a esse projeto ampliou exponencialmente (11,6 milhões de votos em 1989; 17,1 milhões em 1994; 21,4 milhões em 1998; 39,4 milhões em 2002 e; 46,6 milhões em 2006). Agora em 2010, o projeto alcançou os 47.651.434 de votos sempre comparando os números do primeiro turno. O aumento se dá pelo numero de eleitores no país que cresce a cada 4 anos, mas é decorrente também da confiança que a população deposita nos resultados alcançados pelo governo desde 2002.
Esta bagagem político partidária, o apoio popular ao projeto e a sua imagem publica como representante de uma geração que ousou colocar a vida em risco pela implantação de um projeto democrático popular no Brasil, respaldará a sua atuação frente ao governo a partir do dia 1 de janeiro de 2011. São muitas as tarefas, mas a principal é fortalecer ainda mais os laços das diversas forças em disputa pelo poder no país em torno da ainda jovem democracia brasileira. Sem esta continuidade, tudo o que foi construído até o momento pode se perder e retroagirmos algumas décadas frente ao já conquistado.
Quanto ao ainda presidente Lula, a vida também continua e as tarefas se acumulam. Seria de suma importância alguém com o seu perfil ocupar a função de Ouvidor Mor junto à população brasileira criando uma ponte impossível de ser construída por quem está tocando a máquina governamental. Ao retomar suas andanças pelo país, após deixar o governo, o atual Presidente terá condições de politizar toda a implantação das políticas públicas federais e mobilizar a sociedade brasileira em torno dos projetos estruturantes do governo Dilma.
Além disto, não seria demais sugerir ao presidente Lula algo semelhante à Caravana da Cidadania ocorrida na década de 90, agora pelos países africanos, latino-americanos e caribenhos visando à replicação do projeto democrático popular e do modelo de desenvolvimento com inclusão social e preservação ambiental em voga no Brasil para todas essas regiões.
Haverá pedras no caminho, mas é factível imaginar a consolidação deste projeto nos próximos 12 anos.
*Economista e cientista político