Refletir sobre a situação atual da Literatura não deixa de ser uma operação essencialmente política, tantas as mediações envolvidas. De forma que, inspirada por umas leituras de Octávio Paz, tentei articular algumas características que marcam a Literatura no início do século 21:
– O deslocamento dos estudos humanísticos que deixaram de ser o centro dos sistemas educativos; o cientificismo que leva o discurso da física, da química ou biologia a domínios como a história e as ciências humanas. Por exemplo, deixar de ler a Odisséia como texto literário, para ler como relato histórico ou reportagem etnográfica, é como estudar mineralogia na Catedral de Chartres (que, entre outras coisas, é feita de pedras);
– Fora da universidade, a tradição poético/literária é corroída pela hipertrofia da indústria editorial que, aliada à publicidade, converteu em mercado financeiro o intercâmbio de idéias, valores, gostos e opiniões. O mundo literário sempre foi um comércio de bens materiais e espirituais, livros são objetos, mas principalmente objetos simbólicos, porque veículos de idéias e formas estéticas;
– A indústria editorial tende a dissolver a diversidade de públicos em massa. E isso não é deliberado, mas algo inscrito na própria natureza do sistema de produção. O mercado editorial é movido apenas por considerações econômicas – o valor supremo é o número de compradores. É bom ganhar dinheiro, bem como produzir para um grande público, mas nesse processo, infelizmente, a literatura morre e a sociedade se degrada se o propósito básico é a publicação de best-sellers, obras de entretenimento e de consumo popular. E a História da Literatura no Ocidente, sobretudo na Idade Moderna, tem sido a das minorias: escritores rebeldes, críticos da ordem estabelecida, poetas e romancistas inventores de novas formas, artistas herméticos e difíceis. A lógica do mercado não é da literatura;
– As considerações econômicas deslocam a literárias. A tendência à restrição e à uniformidade afeta o autor. Este enfrenta agora conselheiros de marketing e “editores” encarregados de alterar, corrigir e adaptar originais. Perda do diálogo autor e leitor: de onde se escreve e se lê? Para o mercado editorial, publicidade e televisão, todos os lugares, até os mais remotos, estão aqui. E onde fica aqui? Em nenhum lugar, que são todos os lugares. Aqui está no tempo, no agora mesmo. O eixo espacial se dissolve no eixo temporal;
– A ação do mercado tem efeito corrosivo no outro eixo da tradição poético-literária: o temporal. O império do agora desata os laços que nos unem ao passado. A imprensa, a televisão, a publicidade só oferecem relatos do aqui, agora e sempre. Vertiginosamente, o passado se afasta e desaparece. A perda do passado por sua vez provoca a perda do futuro. No Ocidente, desde o século 18, a orientação voltava-se para o futuro e para o progresso, mas com o declínio do Cristianismo e das utopias, o futuro sucumbe ao presente que herda seu brilho, sendo contudo um presente sem peso, flutuante, que não decola, que vai a todos os lugares mas não avança, nem chega a parte alguma, porque perdeu o sentido de orientação;
– A evaporação dos fins é a contrapartida do crescimento dos meios. No âmbito da tradição literária, a expansão do presente se manifesta pela tendência à comunicação instantânea. A duração, atributo da excelência, cede lugar ao consumo rápido;
– Esta mudança econômica coincide com outra de ordem moral e política nas democracias do Ocidente: a conversão dos cidadãos em consumidores. A ausência de movimentos poéticos na contemporaneidade reflete uma das mudanças que marcam nossa época: o fim da tradição de ruptura. É um dos signos que anunciam o fim da modernidade;
– Hoje as artes e a literatura estão expostas a um perigo diferente: não se veem ameaçadas por uma doutrina ou um partido político mas sim por um processo econômico sem rosto, sem alma e sem rumo. O mercado é circular, impessoal, imparcial e inflexível. Sua censura não é ideológica: não tem idéias. Sabe de preços, não de valores;
– A perda da memória histórica tem sido alarmante. A poesia canta, a literatura conta o que está acontecendo, a função de ambas é dar forma e se tornarem visíveis na vida cotidiana. Esta é sua missão principal, a mais antiga, permanente e universal. Ou vão deixar esse papel à cultura de mercado?