“O melhor do teatro é que depois você sai para beber com os amigos”
Mário Bortolotto
Há uns três anos, fui jantar com Marcelo Mirisola e Ronaldo Cagiano no Planeta’s – desses restaurantes duma decadência sublime fecha-não-fecha, situado na confluência absurdamente improvável de Martins Fontes, Caio Prado, Augusta e Praça Roosevelt. Aliás, todo o Planeta’s é pungente, quase indescritível, desde garçons, vinhos, sobremesas, carrinhos de sobremesa, cardápios incluindo trutas com amêndoas, perfeitamente honestas e comestíveis – e tudo baratíssimo, lembrando um mix de naufrágio com suicídio empresarial no melhor estilo anos 50 – uma vez que ainda sobrevive graças à frequência dos teatros of-Roosevelt – atores, dramaturgos, diretores, técnicos, público, fãs de tudo isso retro e supra (antes freqüentávamos o Ferro’s na Caio Prado – em frente à Sinagoga!, cruzes, isto parece a Índia –, apreciadores entusiásticos do frango à passarinho e seu delirante lesbianismo, mas o Ferro’s fechou , então nos mudamos para o Planeta Naufrágio, não esquecendo que na rua detrás, a Nestor Pestana, que já abrigou o Gigetto em dias gloriosos, agora pulula Famíglias Mancinis 1,2,3 e 4 – que cobra R$ 170,00 por um spaguetti absolutamente brochante – mais uns bares-espacinhos gay-comics, tudo muito visual e pós-moderníssimo e em permanente muvuca exposta à visitação da juventude dourada da Moóca, Penha, Perús, Vila Sônia, Parque Bristol, Ribeirão Preto, Limeira,Bauru, quiçá Araçatuba ).
Voltando ao jantar: foi rolando aquelas conversas literárias vagabundas que implicam troca de figurinhas, discreta sondagem de preferências e visões de mundo do recém-chegado Cagiano (ele acabara de mudar de Brasília para Sampa), cumplicidade incondicional entre mim e Mirisola, Cagiano contando sua viagem a Teerã, onde esteve dando palestra com texto previamente censurado tipo dois pontos: a sensualidade da nossa mulata, por exemplo, não passou – a partir do quê chegou-se à conclusão que o fundamentalismo talebã fundido ao fundamentalismo neoliberal texano, ensejando a coexistência de burkas & tênis Nike superpõe censura religiosa local com imposição mercadológica imperial (naturalmente aí Bush, talebãs e nababos comuns de pleno acordo) deixando a população sem outra alternativa senão render-se ao pior dos dois mundos.
Merda no Além e no Aquém, merda em cima e embaixo, assim na terra como no céu. Amém. Realmente, a única guerra que existe é contra as populações civis.
O negócio é o seguinte: no mundo, você só come no MacDonald’s (embora isso foda sua saúde e o filme Supersize-me esgota o assunto), se trata só se tiver plano de saúde (que não cobre quase nada embora cobre os olhos da cara, enquanto neoliberais de plantão destroem o que resta da saúde pública, Serra à frente), não fuma (embora a indústria de cigarros continue faturando horrores), não fala mal dos ricos e poderosos, aliás, melhor não dizer nada: enfia logo uma burka e vai te foder, já que no Paraíso te esperam…o quê? Setecentas virgens!
Local e seres que absolutamente não interessam no caso da pessoa ser mulher, veado, eunuco, Bento XVI, Macaco Simão, aliás, o Além, cristão ou islâmico, é um mecanismo de controle social arcaico, perverso e estúpido demais.
A população pode ser ignorante e louca, mas não é burra, Deus, pra quem acredita, pode ser louco, mas também não é burro. Quer dizer, coisas simultaneamente loucas & burras, como o Paraíso, o Movimento Cansei & ideólogas Hebe Camargo/Regina Duarte/Ana Maria Braga/Ivete Sangalo, além de Sarah Palin, Rumsfield, Pinochet, Berlusconni, Sarcozy, Arnaldo Jabor ou Diogo Mainardi não resistem ao ridículo mais elementar, concluímos filosoficamente, já engatando na entrevista do João Moreira Salles, 45, filho de banqueiro e dono da revista “Piauí”.
Nela, ele discorre instrutivamente sobre o Brasil medíocre, irrelevante (ele não quis dizer descartável?) e sem rumo de hoje, sob todos os aspectos, incluindo artes, literatura, cinema, porque “é importante dentro de determinado caldo cultural. Quando esse caldo desaparece, pode haver cineastas extraordinários – e eles existem – mas os filmes não têm mais centralidade. O cinema teve o seu momento, e o momento passou. A centralidade hoje está na tecnologia,na ciência.Houve um deslocamento do que é vital para a cultura. O que há de vivo hoje nas artes e tem algum impacto é a arquitetura. Não consigo imaginar em nenhuma outra manifestação das artes um impacto tão grande quanto o museu de Bilbao, produzido na cidade de Bilbao e por conseguinte na Espanha.”
Pois é, Bilbao, um pesadelo arquitetônico que nem Borges conceberia porque, ao contrário dos arquitetos de Bilbao, o velho não brincava em serviço.
Referindo-se à casa da Gávea onde, entre os anos 50 e 60, seu pai, o banqueiro e diplomata Walther Moreira Salles, recebia o “jet set” das artes, economia e política de dentro e de fora do Brasil, locação do seu filme “Santiago”, cujo tema são as memórias e a persona do mordomo dos Salles (grifo meu), assunto aliás extremamente relevante para o público brasileiro, e co-ra-jo-so (segundo a brilhante entrevistadora), ele diz: “Aquela é uma casa da década de 50, quando o Brasil tinha uma arquitetura importante; produzia uma literatura muito inovadora; teve grande ambição no cinema, com o cinema novo; e na música, com a bossa nova. No concerto geral das nações, o Brasil não era irrelevante.”
Esse João é um exemplo lapidar do “mauricinho-intelectual-banqueiro-fofo”, amigo do ex-presidente FHC, ambos adornos críticos da nossa mais fina sociedade, mas o que ele não disse (nem lhe foi perguntado) é que o Brasil medíocre de hoje é o resultado da ação duma elite predadora que, sobretudo nos últimos quinze anos, na etapa de financeirização do capital, têm bancos e banqueiros à frente do desmanche do país e seu projeto, ergo sua cultura e arte, Moreira Salles metido nisso até o pescoço e com isenção fiscal! (realmente, estou quase dando razão a ele).
E esse João a fazer um filme sobre Santiago, mordomo da família há três gerações e os dourados anos 50-60, esse João, dono da revista literária Piauí (“Somos imprensa nanica!Somos combativos. A gente é contra o sistema (risos)”) é o mesmo que diz que a arte (literatura incluída) brasileira se tornou medíocre, irrelevante!
Ah, sim, à pergunta da Folha: “No filme ‘Santiago’, você afirma não ter se dado conta, nas filmagens, que o conflito de classe contido na relação patrão/empregado estendia-se à relação diretor/ entrevistado. É porque pensava em sua relação com Santiago pela perspectiva do afeto, não como patrão?”
Resposta: “De maneira nenhuma quero parecer alguém com maior identificação com quem está do outro lado do conflito de classe, que era mais próximo dos empregados.É algo tipicamente brasileiro. Está em Gilberto Freyre, em ‘Casa Grande & Senzala’ – a impossibilidade de a gente não transformar as relações profissionais, principalmente as ligadas à vida domiciliar, em relações que também são pessoais. O afeto atravessa o conflito de classe, rompe um pouco da barreira imposta, é subversivo nesse sentido”. (grifos meus).
Afeto subversivo? Sugiro, meu prezado João, a leitura de A ideologia do favor de Roberto Schwarz. Para aprender a pensar e não cometer declarações estúpidas, um moço tão fino como você. A menos que, como agora no Brasil é fashion entre os ricos posar de anti-intelectual (pensar que, para os ingleses, isto é um hábito secular, idem por imitação os norte-americanos), a coisa toda pode ter sido proposital.
Mas é isso: semanticamente o texto dele soma duas inevitabilidades: ideologia do favor + globalização. E essa mixagem – “favor + globalização” – inconcebivelmente produz uma “ideologia de terceiro grau!” Mas o Brasil é isso aí e a literatura (e a arte) brasileira não existe.
Bom, pela cara da revista Piauí e sua “proposta editorial”, esse dado é apriorístico, isto é, que a literatura brasileira não exista é conditio sine qua nom da existência da própria Piauí. Um país que premia exclusivamente escritores irrelevantes e festeja a mediocridade só tem mesmo que se foder culturalmente.
Ainda a respeito de piauís, na mesma semana rolava um tremendo barulho na imprensa porque o Sr. Paulo Zottolo, presidente da Philips do Brasil e um dos mentores intelectuais do Cansei, para “justificar sua tese moralizante do referido movimento”, havia declarado literalmente: “Não se pode pensar que o país é um Piauí, no sentido de que tanto faz como fez, etc.etc.”(Observatório da Imprensa, 18/8/2007)
Felizmente, no fim da noite, a declaração do referido empresário retificando que “não é o país, mas o Piauí que não existe”, nos fez suspirar aliviados.
*Folha de São Paulo, 13/08/2010