“No peito dos desafinados também bate um coração”, escreveram Tom Jobim e Newton Mendonça ao anunciarem a chegada da bossa nova. Hoje, a canção imortalizada na voz de João Gilberto parece dar o tom às iniciativas do Congresso quando o assunto é política musical. Propostas não faltam. A maioria, contudo, garantem especialistas, jamais sairá do papel – seja porque fere princípios fundamentais do direito autoral, seja porque contraria interesses de empresas, artistas ou usuários.
Entre as centenas de projetos de lei sobre o tema que tramitam tanto no Senado quanto na Câmara dos Deputados, boa parte trata da cobrança de direitos autorais. Cabe ao Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) fiscalizar e receber dos executores a taxa, variável de acordo com o tipo de utilização da música, referente à remuneração de compositores e intérpretes.
Por meio de uma complicada burocracia, o Ecad, com o intermédio de dez associações filiadas, repassa aos artistas o pagamento por terem suas músicas tocadas em shows, rádios, elevadores ou shoppings. Toda e qualquer execução é cobrada.
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Uma busca simples pelo termo “Ecad” no banco de proposições apresentadas apenas na Câmara retorna 50 itens. Entre eles, boa parte isenta as rádios comunitárias e educativas do pagamento de direito autoral. Outros liberam clubes, escolas, igrejas, academias de ginástica ou bares para executar músicas sem pagar. Citado como um dos mais esdruxúlos por músicos ouvidos pelo Congresso em Foco, o PL 5298/01 isenta os motéis dos gastos com direito autoral.
O argumento dos parlamentares em defesa de seus projetos é, em geral, semelhante: trata-se de execução sem fins lucrativos e para um público limitado.
O deputado Raimundo Gomes de Matos (PSDB-CE), autor do PL 793/07, que isenta hospitais e rádios-postes de terminais rodoviários de pagar os direitos autorais, explica: “Não acho justo que o produtor cultural não receba pela venda de seu material, mas essa é uma concessão humanitária. A música nesses lugares relaxa e promove a integração social e cultural, além de despertar o interesse pelo produto cultural”.
Apesar do caráter supostamente humanitário, contudo, segundo o advogado Geraldo da Cunha Macedo, ex-presidente da Comissão de Propriedade Intelectual da Ordem dos Advogados do Brasil do Mato Grosso (OAB-MT), todos os projetos que isentam do pagamento de direitos autorais são ilegais.
Ele explica que o artigo 11º da Lei do Direito Autoral (9610/97), aliado ao inciso XVII do artigo 5º da Constituição Federal, garante que somente o autor pode dispor sobre sua obra. Competiria a ele, exclusivamente, decidir quem pode e como pode usar a sua música. “Nenhuma norma pode isentar do direito autoral porque ele não pertence ao Congresso ou ao Executivo, pertence ao autor e somente a ele. Os autores desses projetos desconhecem a lei”, alerta.
De acordo com essa interpretação da legislação, pelos mesmos motivos que a normatização das isenções de pagamento é inviável, autorizações para o oferecimento gratuito de músicas na internet só podem partir dos artistas.
“Você com sua música esqueceu o principal”
Se é legalmente inviável flexibilizar o direito autoral, os usuários de ferramentas de download de músicas optaram por ignorar a lei – desconsiderando, ao mesmo tempo, as implicações penais de crimes contra o direito autoral.
O Código Penal brasileiro prevê pena de detenção de três meses a um ano ou multa para quem viola os direitos autorais sem obter lucro. Nos casos em que há ganhos, o que configura pirataria, a pena sobe para dois a quatro anos de reclusão mais multa.
Alheia à legislação, no site de relacionamentos Orkut, a comunidade Discografias (cadastrado no Orkut, clique aqui), destinada à divulgação de arquivos de música oferecidos na internet, reúne mais de 300 mil pessoas. Segundo o fundador da comunidade, identificado como Aramis, estão disponíveis lá mais de 20 mil faixas de aproximadamente três mil artistas.
No Congresso, o PL 5046/05 quer conciliar os interesses envolvidos na questão. Proposto originalmente para facilitar o acesso de estudantes a fotocópias de livros, sob o argumento de democratizar a cultura, o projeto do deputado Antonio Carlos Mendes Thame (PSDB-SP) autoriza universitários a reproduzirem, desde que em um único exemplar e sem fins comerciais, qualquer obra, inclusive músicas.
A proposição, com parecer favorável da Comissão de Educação e Cultura, altera o trecho da lei que hoje permite a reprodução apenas de trechos de livros, filmes ou músicas sob a condição de que os fins sejam exclusivamente didáticos.
Aramis é contra a restrição da liberação apenas aos universitários: “Tem que ser para todo mundo, nós não ganhamos nada com a comunidade, além disso, 90% das postagens são de links encontrados na internet, que foram publicados originalmente nos Estados Unidos, no Chile, na Argentina, no Japão ou na Rússia”.
“O que o artista não entende é que a internet é de grande valia para ele, porque faz com que ele seja visto e lembrado. Com isso, ele acaba ganhando ao lotar shows, vender material de divulgação, fazer publicidade”, aponta. E sugere: “Os usuários querem mais é que seja facilitado o acesso à música. Então, até para aumentar o acesso à cultura, deveria existir uma lei de incentivo à música, grandes marcas patrocinariam os artistas e o MP3, por exemplo, não prejudicaria ninguém”.
“A sua enorme ingratidão”
Se os usuários são praticamente unânimes ao reivindicar acesso livre às músicas, os artistas dividem-se a respeito da cultura do MP3 – nome dado ao formato mais utilizado para a compactação de arquivos de som. Enquanto bandas rotuladas de independentes, como a pernambucana Mombojó e a britânica Arctic Monkeys, põem à disposição CDs completos para download em seus sites oficiais, a maior parte dos músicos e das gravadoras declaram guerra ao formato.
Entidade que reúne artistas de todo o Brasil, o Núcleo Independente de Músicos defende um maior controle dos downloads e mais fiscalização e rigidez na cobrança dos direitos autorais. “É claro que o artista de palco, o intérprete, pode prescindir do Ecad ou dos CDs, mas e o compositor?”, questiona Cristina Saraiva, que, ao lado de Ivan Lins, Fernanda Abreu e Francis Hime, coordena o grupo.
A renda do Ecad, calculada a partir do número de vezes em que uma música é executada, é distribuída trimestralmente – parte para o compositor, parte para o intérprete. Além dessa fonte de renda, a maior parte dos autores conta apenas com um percentual sobre a venda dos discos – hoje acordado em 8,4% do total dividido pelo número de faixas incluídas no álbum.
Como alternativa que agrada a usuários e artistas, um grupo norte-americano lançou, em 2001, o projeto Creative Commons. O CC oferece uma série de licenças especiais por meio das quais os artistas abrem mão, integral ou parcialmente, dos direitos sobre a obra e autorizam alterações e usos variados.
No Brasil, o projeto tem o apoio declarado de personalidades como o ministro da Cultura, Gilberto Gil, e o deputado Fernando Gabeira (PV-RJ), que chegou a lançar um livro sob uma das licenças oferecidas. Juridicamente, o Creative Commons recorre à única alternativa possível para driblar as leis de copyright. Como o autor é o único que pode dispor sobre a obra, só ele pode autorizar o seu uso gratuito.
Mais polêmicas que o Creative Commons no mundo real, mas bem mais festejadas no virtual, propostas de ataque aos direitos autorais multiplicam-se na internet. Criado em 1999, o Napster, primeiro programa de compartilhamento de arquivos no formato MP3 entre computadores particulares, foi um fenômeno que deu origem a similares – como o Kazaa e o Emule – e a uma série de brigas judiciais.
Depois de ser criticado pelos músicos da banda Metallica e ser acionado judicialmente pela Sony e pela Warner, o Napster foi fechado. Mas a técnica simples de troca de arquivos que inaugurou é responsável pela maior parte dos downloads de músicas realizados atualmente. A indústria fonográfica atribui ao programa o início da crise que levou à significativa redução nas vendas de CDs desde o início da década.
Para fugir de brigas judiciais e de um destino semelhante ao do Napster, o Pirate Bay, servidor de troca de arquivos de áudio e vídeo, anunciou recentemente que pretende comprar uma ilha-nação. Hospedando o site lá, fugiria de acordos internacionais como a Convenção de Berna, que obriga os países signatários a respeitar regras mínimas de proteção do direito autoral.
O Brasil é um dos signatários da Convenção. Por aqui, ela impedirá, por exemplo, a aprovação da emenda apresentada pelo deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR) à Medida Provisória 358/07. A MP trata de alterações na Lei da Timemania, mas, valendo-se da tática conhecida como “contrabando”, Hauly propôs a redução de 70 para 40 anos do prazo para que obras culturais passem ao domínio público. A convenção fixa o prazo mínimo de vigência dos direitos autorais em 50 anos.
“Comportamento antimusical”
Na justificativa da emenda, Hauly diz que “o prazo excessivo impede que muitas obras deixem de ser apresentadas e de chegar ao conhecimento do público por questões vinculadas ao pagamento de direitos autorais”. Uma análise mais criteriosa das explicações dadas pelos parlamentares ao apresentar as proposições, contudo, mostra que muitas vezes o problema é uma má interpretação da lei, o que leva a abusos por parte do Ecad.
O deputado Raimundo Gomes de Matos, autor do PL que isenta hospitais e entidades beneficentes de pagar a taxa cobrada pelo escritório, diz que a proposição foi motivada por um episódio ocorrido depois de um show do cantor Fagner na Associação de Pais e Amigos de Excepcionais (Apae) de Fortaleza. “Ele mesmo não cobrou cachê, mas aí veio o Ecad com cobrança e multa”, conta.
Segundo o advogado Geraldo da Cunha Macedo, a situação narrada pelo deputado aconteceu graças a um equívoco na interpretação das atribuições do Ecad. Ele explica que o artigo 11 da Lei do Direito Autoral (9610/97) garante que somente o autor pode dispor sobre sua obra e é exclusivamente ele quem decide quem pode, e em que condições, usar a música. Ou seja, em casos como o de Fagner, bastaria o cantor abrir mão dos direitos autorais para que o Ecad ficasse impedido de fazer a cobrança.
Em uma sugestão de projeto de lei apresentada à Comissão de Legislação Participativa da Câmara, a Casa do Compositor Musical critica os sistemas de arrecadação e de distribuição dos direitos autorais: “O Ecad é dominado pelos interesses das gravadoras estrangeiras e não ampara o compositor musical, que, se não tiver outra profissão, morre de fome”.
Considerados abusivos pelos deputados, que propõem as mais diversas flexibilizações, os critérios do escritório para auferir a execução de músicas são avaliados como rudimentares pelo Núcleo Independente de Músicos.
Segundo Cristina Saraiva, a checagem é feita com base no acompanhamento da programação por fiscais e em playlists divulgadas pelos executores. “Erros e confusões com nomes de autores e músicas são freqüentes e geram perdas para os artistas”, explica.
Quando o nome da música ou do artista é registrado com erro e uma canção correspondente não é localizada no banco de dados do Ecad, o valor recolhido de direitos autorais vai para um fundo retido. Se não for identificado em um prazo de cinco anos quem tem direito ao dinheiro, ele é redistribuído entre as 500 faixas mais executadas – em geral, as de artistas mais conhecidos, normalmente contratados das grandes gravadoras, conforme aponta a Casa do Compositor.
A prestação de contas do Ecad também é alvo de críticas dos músicos. Em 2005, o escritório arrecadou um total de R$ 254.747.161,25. O dinheiro foi distribuído de acordo com tabelas de execução, mas os artistas não têm acesso aos dados completos. Eles recebem apenas um extrato informando o número de vezes em que a música foi tocada e o valor a que têm direito – não há como conferir se os dados ou valores estão corretos.
“Isso dá origem a inúmeros processos”, narra Cristina. Por outro lado, admite a coordenadora do Núcleo Independente de Músicos, não há muita escolha para os compositores. “Se nós mesmos criticarmos o escritório, como ficamos? Ele é nosso representante, se dizemos que não serve para nada, ouviremos: ‘se nem vocês estão satisfeitos, melhor acabar com ele logo’. O Ecad tem problemas, não há dúvidas. O que não podemos é jogar o bebê fora junto com a água da banheira”, pondera.
Procurado pela reportagem, o Ecad não quis se manifestar.
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