Paulo Kramer*
O leitor que, por qualquer razão, se interessa pelo jogo da política e do poder e precisa acompanhá-lo com atenção fará um ótimo uso deste finalzinho de férias se dedicar um tempo a três obras recentemente lançadas, a saber: Por dentro do processo decisório (como se fazem as leis). Brasília: Diap, 2006, do jornalista, cientista político e diretor de Documentação do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar, Antônio Augusto de Queiroz; Como um projeto se torna lei. Brasília: CNC, 2006, do assessor parlamentar da Confederação Nacional do Comércio, Roberto Velloso; e Gasto público eficiente (91 propostas para o desenvolvimento do Brasil). Rio: Topbooks/S. Paulo: Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, 2006, coletânea organizada pelo economista e consultor legislativo do Senado Federal Marcos Mendes, com prefácio do embaixador aposentado, ex-ministro da Fazenda e atual diretor do Instituto Fernand Braudel, Rubens Ricupero.
Os dois primeiros livros são de utilidade permanente para jornalistas, analistas políticos, profissionais de Relações Institucionais e Governamentais e demais pessoas obrigadas a compreender as regras que estruturam e fazem funcionar o Congresso Nacional e norteiam as relações Executivo/Legislativo, bem como para todo o cidadão convicto de que a saúde da democracia representativa depende de uma cultura cívica e de um clima de opinião contrários à velha máxima de Bismarck: “Há duas coisas que o povo jamais deveria saber como são feitas – as salsichas e a política”. A terceira obra está predestinada a elevar o nível do debate da hora – como redimensionar o aparelho do Estado para reduzir uma sufocante carga tributária e liberar energias empreendedoras e recursos privados para acelerar a retomada do crescimento econômico em bases sustentáveis? – injetando-lhe sabedoria e bom senso.
O livro de Queiroz – que para seus muitos amigos e admiradores, será sempre o Toninho do Diap – é um manual sobre o sistema de tomada de decisões no Poder Executivo (seus principais níveis, esferas e atores), o processo de elaboração das leis na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, as políticas públicas decorrentes da interação desses Poderes e o papel que os representantes dos grupos de interesse, ou lobbies, podem e devem exercer na escolha de caminhos legais e legítimos para obter decisões favoráveis ou modificar disposições adversas.
Basta percorrer as minuciosas subdivisões do terceiro capítulo (sobre “Processo Legislativo”) para testemunhar o orgulho do especialista em compartilhar seu vasto conhecimento regimental com o leitor leigo de forma didaticamente acessível: iniciativa das leis; participação da sociedade civil e iniciativa popular; o papel das comissões técnicas; prazos de tramitação; articulação e composição das comissões; como se fazem as leis; tipologia, hierarquia, iniciativas, quorum e tramitação de proposições; Propostas de Emenda à Constituição (PEC); Projeto de Lei Complementar (PLP); Projeto de Lei Ordinária (PL); Projeto de Lei Ordinária na Câmara – poder conclusivo; Projeto de Lei Complementar – sempre votado em Plenário; Projeto de Lei Ordinária no Senado; Medida Provisória passo-a-passo (MPV); matriz de acompanhamento; medidas provisórias – para que servem; e ciclo orçamentário.
As dicas de Toninho sobre as condições para o sucesso de um grupo de pressão merecem, também, muita atenção. Afinal, o Diap, organização não-governamental mantida por contribuições dos seus clientes, que são associações profissionais, sindicatos, federações e confederações de trabalhadores de todo o país, há muito tempo, desde a Constituinte de 87/88, é uma referência para políticos, assessores e as comunidades de articulação de interesses que gravitam em torno da Praça dos Três Poderes e aguardam com curiosidade e, não raro, apreensão cada nova edição de suas publicações, voltadas a classificar os parlamentares mais poderosos e influentes (a série Os cabeças do Congresso, já caminhando para o seu décimo terceiro ano), ou iluminar as posições assumidas pelos atores políticos do Executivo e do Legislativo em face de questões de política pública de relevante interesse para as classes trabalhadoras organizadas (Balanço dos dois primeiros anos do Congresso na era FHC, de 1997; e Quem foi quem nas reformas constitucionais, de 1998).
O ponto forte do livro de Roberto Velloso, já em sua quarta edição (revista, atualizada e ampliada), são as sínteses das atribuições do Senado, da Câmara e das comissões de ambas as Casas, vastamente ilustradas por fluxogramas contendo todas as etapas de tramitação de MPs, PECs e PLs. A organização desse material é um verdadeiro achado que não só facilita o trabalho dos profissionais que vivem para, do e no Congresso Nacional, como também alivia o suplício da decoreba no estudo dos regimentos internos para aquelas duas únicas pessoas que se preparam no momento para concursos públicos – Deus e todo o mundo! Depois ainda perguntam por que o gasto público não pára de aumentar…
E com isso chego ao último e, repito, atualíssimo item desta resenha. A coletânea a cargo de Marcos Mendes é uma radiografia minuciosa das despesas em todos os níveis e esferas de governo confiada a conceituados experts, tais como o economista-guru das finanças públicas Raul Velloso (autor do capítulo “Ajuste fiscal através da redução de despesas obrigatórias”); o consultor legislativo do Senado Gilberto Guerzoni (“Política de pessoal em um ambiente de economia estável”); o próprio Mendes (“Despesas dos poderes autônomos: Legislativo, Judiciário e Ministério Público”); Amir Khair, ex-secretário de Finanças da prefeitura de São Paulo – gestão Erundina –, com José Roberto Afonso e Weder de Oliveira (“Lei de Responsabilidade Fiscal: os avanços e aperfeiçoamentos necessários”; Edilberto Pontes Lima e Rogério Boueri Miranda (“O processo orçamentário federal brasileiro”); e Luiz Fernando Bandeira (“Sistemas de licitação eletrônica: eficiência e prevenção da corrupção”) – entre outros. No décimo quarto e último capítulo, o cientista político da Universidade de Minnesota David Samuels disseca “O alto custo de financiamento de campanha e a reforma política”.
No seu prefácio, sugestivamente intitulado “Gasto público: o problema não é só a quantidade mas a qualidade”, Ricupero mostra como a vitória da sociedade brasileira sobre a hiperinflação, depois de uma luta de duas décadas, puxou para o topo da agenda nacional o debate sobre o tamanho e as despesas do Estado. Em uma tirada que evidencia seus pendores orteguianos, o prefaciador chega a filosofar: “Ser problemático por excelência, o homem só resolve um problema para descobrir que ele mascarava outro sob a superfície” (p. 14). Ricupero lamenta, porém, “que não se tenha sequer esboçado até agora um programa educacional para explicar à população com palavras simples e diretas o que está em jogo para cada cidadão sempre que o governo gasta muito e gasta mal […] O objetivo não seria vender políticas públicas como se venderiam sabonetes. O que se tem de fazer é induzir as pessoas à reflexão sobre os problemas subjacentes à nossa persistente incapacidade de imprimir racionalidade e, sobretudo, equidade à elaboração e execução do orçamento.”
O que torna Gasto público eficiente… um livro atraente para o leigo interessado, a par da excelência reflexiva e expositiva dos co-autores, é sua intenção deliberadamente ‘prática’ (o que, é uma pena, nem sempre significa politicamente exeqüível): em vez de se limitar ao diagnóstico de nossas taras patrimonialistas (cultura orçamentívora, achaques clientelísticos, altíssima tolerância à corrupção cevada no culto nacional do jeitinho,uma procissão infindável de waldomiros, mensaleiros & sanguessugas) ou de chover no molhado de temas sobejamente analisados alhures, como o da crise previdenciária, a obra é recheada de propostas transformadoras (91 ao todo, como lembra seu subtítulo). Em uma bem-vinda cortesia ao leitor apressado, elas vêm listadas e resumidas no cômodo formato de um sumário executivo logo às primeiras páginas. Peço vênia destacar algumas que me parecem particularmente importantes, a par de oportunas:
– “6. Instituições públicas de ensino superior devem buscar fontes alternativas de financiamento, e o governo deve dar prioridade a sistemas de crédito estudantil, em vez de financiar integralmente os estudos dos alunos de universidades públicas;
– “14. Frear a tendência observada desde 2003 no sentido de expandir a admissão de pessoal, em especial para categorias, de nível médio e que não são ‘típicas de Estado’;
– “21. Atuação política do Poder Executivo Federal no sentido de escolher membros das Mesas do Senado e da Câmara (em especial o Primeiro Secretário) que estejam comprometidos com uma política de controle e racionalização de gastos;
– “26. Instituir um bônus financeiro para estimular o reagrupamento de municípios que, mesmo sem viabilidade econômico-financeira, se emanciparam nos últimos anos;
– “50. Alteração da regra que limita os restos a pagar em fim de mandato, fixando-se que a igualdade entre restos a pagar e disponibilidades de caixa se verifiquem ao final de cada ano, e não apenas nos últimos dois quadrimestres de mandato;
– “57. Separar a relatoria-geral [da Comissão Mista de Orçamento do Congresso Nacional] em duas, nomeando-se o relator da despesa e o relator da receita. No procedimento atual, o relator-geral é induzido a aumentar a receita estimada para acomodar a pressão por mais despesa;
– “74. Para agilizar as licitações e evitar as atuais batalhas judiciais, deveria haver um órgão […] (separado do Poder Judiciário) para julgar, com rapidez, os eventuais recursos administrativos em matéria de licitação. O órgão julgador dos recursos necessita ter poder para suspender os recursos, e suas decisões devem ter caráter impositivo, vinculante […] Fixação de prazo máximo de 90 dias para julgamento de recursos;
– “85. Evitar o financiamento público exclusivo de campanhas eleitorais, pois isso não será capaz de coibir o uso do caixa 2; e
– “91. Introdução de mecanismos que acelerem o processo judiciário de forma que aqueles que cometam crimes em suas campanhas eleitorais não sejam condenados apenas após o final do cumprimento do mandato."
Eis, portanto, minha sugestão para o vasto leitorado do Congresso em Foco: monte seus kits-leitura com os ingredientes aqui resenhados e enfrente, com segurança intelectual e atitude crítico-propositiva, um ano que promete ser movimentado. Mas, acima de tudo, aprenda, com Hemingway, a “jamais confundir movimento com ação”.
P.S. – Acaba de me ocorrer que a coletânea sobre gasto público eficiente formaria um belo tríptico com duas outras obras também recentes: Reformas no Brasil (balanço e agenda), André Urani, Fabio Giambiagi e José Guilherme Reis (orgs.) Rio: Nova Fronteira, 2004; e Rompendo o marasmo (a retomada do desenvolvimento no Brasil), de Fabio Giambiagi e Armando Castelar Pinheiro. Rio: Campus, 2006. Oxalá possa eu resenhá-las, dentro em breve, nesta coluna.
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