As guerras no Oriente Médio (Afeganistão, Iraque) do final dos anos 80 promovidas sob diversos pretextos pelos EUA, marcam não só o fim da guerra fria, como “naturalizam”, por parte da potência hegemônica, (sobretudo após o 11 de setembro) o domínio, posse e gestão das reservas petrolíferas da região – a mais rica do mundo em petróleo –, têm gerado uma mitologia, um folclore, algumas verdades e liturgias, infinitas mentiras e controvérsias: no fundo, mera perfumaria, claro, quando se pensa no que realmente são, sempre foram e serão: saque e exploração do mais fraco pelo mais forte. Desde que o mundo é mundo.
A administração de uma (ou várias, mas sempre a mesma) guerra que se eterniza, bem como a idéia de que os Estados Unidos já não são mais os mocinhos do planeta, é algo a pairar como uma nuvem negra sobre o Espírito de Época e o moral das tropas norte-americanas –, por mais “privatizados” (hallyburtonizados), imbecis, grosseiros e caipiras que sejam os novos marines.
O fato é que a vida deles não deve ser nada fácil: repudiados em seu próprio país quando retornam, repudiados enquanto lutam, repudiando internamente uma guerra cuja verdadeira razão lhes escapa ou não lhes diz respeito ou é francamente contestada. Todo heroísmo, bravura ou coragem de que forem capazes lhes são negados pela sociedade, posto sequer serem considerados soldados duma guerra injusta, mas mercenários a soldo dum massacre implacável. E inútil. Salvo àquele 0,1% hiper-rico do planeta.
Tanto a vida quanto a morte, que aliás é tema do recente The Messenger (O Mensageiro, 2009, direção de Oren Moverman), cujo enredo trata daquele setor do exército americano, que leva precisamente este nome (“mensageiro”), cuja função é dar a notícia da morte dos soldados americanos aos seus familiares, destacando, para isso, suboficiais que cumprem a tarefa em duplas (assim como os “recrutadores”). No caso, os atores Ben Foster e Woody Harrelson.
Com extrema sensibilidade – um complexo mix de humor e compaixão -, o diretor faz o contraponto entre a abordagem deles – orientada por Woody Harrelson, o oficial mais antigo, no sentido da impessoalização/padronização do informe, algo que chega a detalhes risíveis tipo: “Não sorria, não dê bom dia, não há nada de bom no que você vai dar”; “sempre bata na porta, não toque a campainha, por causa daquelas musiquinhas alegres que cortam o clima…”; “sempre estacione meio longe para não te avistarem logo de cara” .
No entanto, numa dessas visitas, apesar de terem estacionado conforme manda o manual (isto é, longe), são surpreendidos por toda a vizinhança a observá-los através dum alambrado, donde que Harrelson comenta, à guisa de consolo: “Bom, podia ser Natal…”.
Outro momento esclarecedor é quando a viúva dum soldado (representada por Samantha Morton) fala do cheiro da camisa do marido: “Era horrível, diz ela, cheirava a medo e desespero. Por isso, para mim, foi um alívio quando ele se realistou pela terceira vez: de qualquer forma, desde a primeira vez que voltou, já estava morto mesmo”.
A propósito – provando que a realidade imita a ficção e vice-versa – Robert Fisk, o famoso correspondente de guerra inglês do The Independent, comenta em matéria recente: “Começo a ficar cansado desta fábula do soldado demente. Era previsível, claro. Nem bem o sargento de 38 anos que massacrou no domingo passado,11/3, 16 civis afegãos, entre eles nove crianças, perto de Kandahar, voltou à sua base, os especialistas em defesa e a turma dos thinks thanks anunciavam que ele havia enlouquecido. Não era um perverso terrorista sem entranhas – como seria, se fosse afegão & talibã –, mas só um cara que ficou louco. Usou-se essa mesma bobagem para descrever os soldados norte-americanos homicidas que perpetraram uma orgia de sangue na cidade iraquiana de Haditha. Com a mesma palavra se descreveu o soldado israelense Baruch Goldstein, que massacrou 25 palestinos em Hebrón.”
Segundo a mídia: “Um homem que provavelmente havia sofrido algum colapso (The Guardian), um soldado canalha (Financial Times) cujo distúrbio (The New York Times) foi, sem dúvida (sic), perpetrado em um lapso de loucura (Le Figaro). Será? Supõe-se que acreditemos nisso? Claro, se estivesse completamente louco, nosso sargento teria matado 16 de seus companheiros norte-americanos e depois ateado fogo aos corpos. Mas não, escolheu matar afegãos. Houve uma escolha. Por que, então, matou afegãos?”
Ué, mas eles não foram mandados para lá pra matar afegãos? Ergo, o sujeito não DEVIA estar louco, segundo Fisk, para quem a questão é mais nebulosamente sutil:
“Todos tivemos nossos massacres. Aí está My Lai, e nosso próprio My Lai britânico, em uma aldeia chamada Batang Kali, na Malásia, onde os guardas escoceses – envolvidos em um conflito contra impiedosos insurgentes comunistas – assassinaram 24 indefesos trabalhadores em 1948. Evidente que se pode argumentar que os franceses na Argélia foram piores que os norte-americanos no Afeganistão – diz-se que uma unidade francesa de artilharia desapareceu com 2 mil argelinos em seis meses –, mas isso é tanto como dizer que somos melhores que Saddam Hussein. Certo, mas que parâmetro de moralidade! Trata-se de tudo isso. Disciplina. Moralidade. Valor. Mas quando se vai perdendo uma guerra que se finge estar ganhando – me refiro ao Afeganistão, é claro –, suponho que isso é esperar demais.”
Sem dúvida, mas, a meu ver, trata-se não só de disciplina ou moralidade ou valor, mas dos tênues, frágeis limites entre sanidade e loucura.
Afinal, ninguém aguenta, em são consciência, sentir-se universalmente odiado. E por razões que lhe escapam.