Há momentos de nossa vida que guardamos como se fossem fotografias. Ficam armazenados na caixa da nossa memória e, quando menos se espera, são lembrados.
Na solidão de uma leitura, de um debate ou de uma visita, abrimos a caixa para, solitariamente, revisitá-las. Ao ler que Hans Blix pediu o fim das ameaças contra o Irã, abri minha “caixa” de fotografias da visita que fiz ao Iraque, entre os dias 4 e 6 de fevereiro de 2003, pouco mais de um mês antes do início da invasão do país pelos Estados Unidos. Rapidamente passaram pela minha memória algumas fotografias de Bagdá:
1) Nos bares e restaurantes não se vendia nenhum tipo de bebida alcoólica. Portanto, não havia o alarido de bêbados ou “animados” pelo álcool em nenhum desses locais, e muito menos nas ruas.
2) Na rua, parei diante de um vendedor de frutas. Observava as frutas da região, frescas ou secas, que vendia. Sem emitir nenhuma palavra (não falo inglês e tampouco árabe), o homem estendeu-me um punhado de pistaches para eu comer.
3) Em outra ocasião, fiquei admirando um homem fazendo pão: com um forno de tijolos aquecido, ele estava enrolando a massa para, em seguida, com uma técnica própria, afiná-la e depois grudá-la no teto do forno. Pelo alto aquecimento do forno e pela textura (muito fina) da massa, o pão assava em menos de um minuto. Terminou de fazê-lo, recolheu-o e estendeu o braço oferecendo-me o pão.
4) Na frente de uma mesquita, havia uma sala com cerca de 20 homens sentados no chão. Todos com tesouras, agulhas, remendos, botões, etc., consertavam roupas. Cena nunca vista por mim. Querendo fazer uma foto, me fiz entender que era do Brasil. Antes de consentir sobre a foto, um deles gritou “Ronaldo” e outro, “Flamengo” (por que logo Flamengo?). Fiz a foto, mas a cena não me sai da memória.
5) Reunião com os inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica, cujo ex-chefe foi Hans Blix. Esta reunião ocorreu no Hotel Canal, que sofreu um atentado em agosto de 2003, matando o brasileiro Sérgio Vieira Mello, funcionário da Organização das Nações Unidas (ONU). Nesta reunião, foi-nos dito com todas as letras: o Iraque não possuía armas de destruição massiva.
Publicidade6) Em Bagdá, as crianças brincavam, corriam, frequentavam as escolas, olhavam para a minha barba e riam. As mais ousadas se aproximavam, passavam a mão na barba e corriam, rindo. Homens e mulheres andavam normalmente pelas ruas.
7) No centro de imprensa de Bagdá, jornalistas do mundo todo e parlamentares europeus e brasileiros assistíamos à exposição feita na sede da ONU por Colin Powell, então secretário de Estado dos EUA. Nosso objetivo era ouvir o militar norte-americano dizer onde o Iraque armazenava (escondia) as armas de destruição em massa. Após a sua fala, iríamos até o local. Na exposição, porém, ele não indicou local algum.
Hoje, me encho de interrogações.
1) Que fim levaram aquele vendedor de frutas que me presenteou com um punhado de pistaches e o que me deu o pão? Continuam vendendo frutas e assando pães? Esses homens são felizes como eram antes da invasão norteamericana? Que dores carregarão para sempre?
2) Quantos daqueles costureiros continuam vivos, conhecendo os jogadores brasileiros e torcendo pelos times do Brasil?
3) As crianças que riram ou passaram as mãozinhas na minha barba continuam vivas? Estão órfãs? As que sobreviveram, que lembranças carregarão para sempre?
Lula, como presidente do Brasil, visualizando a possibilidade de outra guerra, tentou um acordo tríplice (Brasil, Irã e Turquia) sobre o uso de energia nuclear pelo Irã. Foi duramente criticado pelos insensatos de direita (PSDB, DEM e PPS, aliados a setores da mídia) do Brasil e pelos interessados nas guerras, como EUA e Israel.
Cerca de dois anos depois da tentativa feita por Lula, Hans Blix dá o alerta e propõe uma solução negociada. Espera ele que uma reunião entre iranianos e representantes do P5+1 (China, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, Rússia e Alemanha) desmobilize a sanha guerreira de Israel e dos EUA. Entende Blix que é possível “sentar e sonhar com grandes soluções”.
Na questão do Iraque, os EUA não ouviram Hans Blix. EUA e Israel irão ouvi-lo agora? Tenho dúvidas, pois ambos são movidos economicamente pela guerra e, como donos absolutos da razão, preferem movimentar a economia interna a poupar vidas inocentes, como sempre fizeram e fazem.
Será o Irã, agora, o Iraque anunciado por Hans Blix e pelos homens e mulheres de bom senso?