Ronaldo Brasiliense*
Quem poderia imaginar que os índios brasileiros seriam abandonados no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva? A demissão do sertanista Sydney Possuelo, coordenador da Divisão de Índios Isolados da Fundação Nacional do Índio (Funai), por ter criticado a frase estapafúrdia do presidente de plantão na Funai, Mércio Gomes – “índio tem terra demais” – revela que o governo dos companheiros deixou de lado os compromissos históricos com as minorias.
Os índios brasileiros, coitados, que seriam mais de 2 milhões à época da chegada do colonizador português, foram massacrados ao longo dos últimos 505 anos. Um genocídio que tem pouco destaque na história oficial deste país, de samba, futebol e carnaval.
Para não me alongar, deixo o recado aos companheiros de plantão no poder, encastelados no Palácio do Planalto e na Esplanada dos Ministérios (e na Funai, claro) através de duas entidades que, desde os tempos da ditadura militar, sempre estiveram na luta em defesa dos povos indígenas: o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). Leiam e tirem suas conclusões.
Cimi
Histórico aliado do Partido dos Trabalhadores e de Lula, o Cimi, ligado à Igreja Católica, caiu na real. Vejam o que diz o Cimi, Regional Sul. “Nossa avaliação é de que o governo Lula não assumiu sua responsabilidade histórica e legítima de conclamar a sociedade brasileira para ajudá-lo a construir novos caminhos, tendo em vista a justiça social, a paz no campo, o pagamento de salários mais justos, a redução de impostos, a estruturação de programas de geração de emprego e de renda, a reforma agrária, a demarcação das terras indígenas e a formulação e estruturação de novas políticas públicas, dentre elas a indigenista”.
Diz mais o Cimi: “Todos os indicativos, até o momento, apontam para uma mudança de rumo no governo e não na estrutura da nação brasileira. Não vemos o governo Lula como ‘um governo em disputa’. Se algum dia esteve, pelo que temos visto, já tomou a sua decisão. Apesar de não assumir publicamente sua posição, preferindo esconder-se atrás do demagógico e irrealista slogan ’Brasil: um país de todos’ (sic), optou por aliar-se aos grupos econômicos e políticos que sempre estiveram na condução do país e que são, conseqüentemente, os responsáveis por grande parte dos problemas estruturais do Estado Brasileiro, a saber, a corrupção, a exclusão social, a concentração de renda e de terra, a violência no campo e na cidade e as impagáveis dívidas interna e externa que beiram um trilhão de dólares.”
No que se refere aos povos indígenas, o Cimi avalia que “o governo do presidente Lula optou por evitar conflitos com militares, fazendeiros, arrozeiros, políticos, madeireiros, mineradores e empresas geradoras de energia elétrica.”
O governo do presidente Lula, no entender do Cimi Regional Sul, “rendeu-se às pressões e chantagens impostas por estes setores. Este governo, sabendo dos interesses econômicos e políticos que teria de enfrentar caso optasse por demarcar e proteger as terras e estruturar uma política e um órgão indigenista capaz de executar ações realmente voltadas para a defesa dos direitos e interesses dos povos indígenas, acovardou-se e preferiu trilhar o caminho mais fácil, caminho da omissão e da conivência com os setores antiindígenas.
Coiab
Outro ex-aliado do presidente Lula também mostra indignação pelo descaso com a situação do índio brasileiro. A Coiab e o Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas, que reúne uma dezena de organizações indígenas e entidades indigenistas, estão reivindicando do presidente Lula a conclusão dos processos administrativos paralisados na Fundação Nacional do Índio (Funai).
O Estado brasileiro é lento na demarcação das terras indígenas, que são reconhecidas apenas depois de muita pressão dos povos e do movimento indígena. Nos últimos sete anos (1998-2004), uma média de 14 terras indígenas tiveram seus limites declarados, por ano, pelo Ministério da Justiça.
Considerando-se que 628 terras indígenas ainda precisam ser demarcadas ou ter seus limites revistos, se o Brasil mantiver essa média, precisaremos de mais 45 anos para reconhecer todas as terras indígenas do país, segundo dados do Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas.
Os números contradizem as afirmações do presidente da Funai, Mércio Pereira Gomes, de que as demarcações de terras indígenas estão chegando ao fim.
Outros dados contrariam o discurso oficial: na gestão de Lula, a média de terras declaradas por ano caiu para seis. A lentidão nos processos de demarcação das terras está diretamente relacionada às escolhas políticas feitas pelo governo federal, pois é fruto da pressão da base de sustentação do governo no Congresso.
O governo Lula não poderia contrariar as demandas de políticos que são também fazendeiros, sojicultores, criadores de gado, e, a esses grupos, que há séculos mantêm sua força na definição da política institucional do país, não interessa que seja garantida aos povos indígenas a posse das terras que tradicionalmente ocupam.
A Funai criou, durante todo o ano de 2005, um único Grupo Técnico (GT) para iniciar os estudos antropológicos que levam à identificação e delimitação de terras indígenas. Para outras 16 terras, foi iniciada a realização de diagnósticos ou foi publicada apenas uma "portaria de fundamentação da identificação", no lugar de serem criados GTs.
Em vez de utilizar os passos administrativos determinados pelo decreto 1.775/ 96, que regula o processo de demarcação das terras indígenas, a Funai ignora a legislação e aumenta a burocracia. Tudo para atrasar as demarcações.
Como conseqüência imediata da paralisia das demarcações, constata-se o crescimento do número de conflitos pela posse nas terras indígenas, expondo comunidades e lideranças indígenas à violência dos invasores. Em 2003, foram 33 índios assassinados. Em 2004, 30 mortes, e, até outubro de 2005, já
haviam sido registrados 33 homicídios.
Índios, pobres índios.