Depois de segurar por três anos a votação da chamada PEC do Trabalho Escravo, aprovada em primeiro turno na Câmara em agosto de 2004, o Congresso conseguiu agora nada menos do que suspender as ações do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), responsável desde 1995 pelo resgate de 25 mil trabalhadores que se encontravam em situação análoga à de escravos.
Após os ataques da bancada ruralista no Senado aos fiscais que libertaram, em junho, 1.064 trabalhadores mantidos em condições análogas à escravidão na fazenda da Pagrisa (Pará Pastorial e Agrícola S/A), principal produtora de álcool e açúcar do Pará, a secretária de Inspeção do Trabalho, Ruth Vilela, determinou anteontem (25), sob forma de protesto, a suspensão das atividades do grupo móvel. Ruth alegou que, diante da pressão, os servidores corriam risco de morte.
A crise, deflagrada pela visita de uma comissão de senadores à fazenda em Ulianópolis (PA), levou ontem (26) o ministro do Trabalho, Carlos Luppi, ao Senado. A comissão externa foi criada para apurar a denúncia feita pela empresa, que alega inocência, de que houve abuso por parte dos fiscais na autuação (leia a versão da empresa).
Em defesa do grupo móvel, Luppi entregou ao senador José Nery (Psol-AL), presidente da Subcomissão Temporária do Trabalho Escravo, subordinada à Comissão de Direitos Humanos, os 18 volumes do relatório da ação na Pagrisa. E rebateu as críticas dos senadores que desqualificaram a maior libertação de trabalhadores já feita pelo ministério.
"Eles só foram à usina e não ao canavial, distante uma hora de caminhada", disse o ministro em referência à visita dos senadores no último dia 20. "Essa ação resultou na desqualificação de um trabalho brilhante", completou.
A empresa alega que houve exagero por parte dos fiscais e que, em função disso, já acumula prejuízos, com a decisão da Petrobrás e da Ipiranga de suspenderem a compra de álcool da Pagrisa.
Confronto no Senado
A repercussão negativa da suspensão das fiscalizações fez ontem a comissão externa recuar. Os senadores aprovaram requerimento pedindo ao Ministério do Trabalho a retomada imediata dos trabalhos de fiscalização do grupo móvel. O colegiado ainda aprovou a convocação de 22 autoridades envolvidas com a questão, inclusive o próprio Luppi, e prometeram continuar a apuração do caso na próxima semana.
Além de abrir uma crise entre o Senado e o Ministério do Trabalho, o episódio acentuou as divergências entre os parlamentares da bancada ruralista e aqueles que defendem os pequenos produtores rurais.
Os primeiros são liderados pela senadora Kátia Abreu (DEM-TO), relatora da comissão externa criada para apurar o caso, e pelo senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA), autor do requerimento que criou o colegiado. Além de Nery, saíram em defesa do grupo móvel os senadores Sibá Machado (PT-AC), Eduardo Suplicy (PT-SP), Paulo Paim (PT-RS). Cristovam Buarque (PDT-DF) e Patrícia Saboya Gomes (PSB-CE), integrantes da Subcomissão Temporária do Trabalho Escravo.
Abuso de poder
Kátia, que liderou o grupo de senadores que visitou a fazenda da Pagrisa dois meses após a libertação dos trabalhadores pelo Ministério do Trabalho, disse não ter encontrado no local nada que pudesse ser considerado degradante. Pelo contrário. Na avaliação dela, se houve irregularidade, foi por parte dos fiscais.
"Há indícios de abuso de poder", afirmou a relatora da comissão. O senador Romeu Tuma (DEM-SP), outro a participar da visita, também disse não ter visto nada que comprometesse a Pagrisa, mas adotou um discurso mais cauteloso. "É necessária uma perícia da Polícia Federal para saber se algo foi maquiado entre a fiscalização e nossa visita na semana passada", ponderou.
Criticado pelos senadores que inspecionaram a fazenda, Luppi não se encontrou com os integrantes da comissão externa. Mas se comprometeu com os senadores da Subcomissão do Trabalho Escravo a tentar convencer os fiscais a retomarem os trabalhos. "Já agendei uma nova conversa com os auditores e vou tentar convencê-los a retomar os trabalhos na próxima semana", declarou.
PEC abandonada
A crise detonada pelo caso Pagrisa também revela a insatisfação de parlamentares da base governista com a postura do Palácio do Planalto em relação à erradicação do trabalho escravo no país. A principal crítica diz respeito ao desinteresse do governo pela aprovação da PEC do Trabalho Escravo, em tramitação no Congresso desde 2001.
Para o relator da proposta, o deputado petista Tarcísio Zimmermann (RS), o governo abandonou a defesa da PEC por causa da pressão dos ruralistas que integram a base governista (leia mais). “É evidente que não há mais a prioridade dada pelo governo no primeiro mandato do presidente Lula para erradicar o trabalho escravo”, afirmou ao Congresso em Foco.
O texto da PEC, aprovado em primeiro turno na Câmara em 2004, prevê que as propriedades rurais e urbanas em que forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo serão desapropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem indenização ao proprietário, após sentença judicial transitada em julgado.
Os bens de valor apreendidos, decorrentes da prática de trabalho escravo, rural ou urbano, serão destinados a um fundo especial, cuja aplicação dos recursos será disciplinada por lei infraconstitucional.
Na mira da Justiça
Independentemente do que render a polêmica no Senado, os donos da Pagrisa, os irmãos Murilo, Fernão e Marcos Villela Zancaner, vão responder a processo penal por utilizar mão-de-obra em situação análoga à de escravo, por não seguir a legislação trabalhista e impor perigo à saúde dos trabalhadores. Os empresários, por sua vez, negam que mantenham os seus funcionários em condições degradantes.
A denúncia do Ministério Público Federal (MPF) foi aceita na segunda-feira (24) pela juíza Carina Cátia Bastos de Senna, da Subseção Judiciária Federal de Castanhal, no Pará. A juíza acatou os