O casamento de meu pai foi, como diziam os romances do século 19, uma mésalliance. Literalmente, segundo o Aurélio, “um casamento desigual, com pessoa de condição social inferior à sua”: ele fica com a rosa, ela com os louros. Ledíssimo engano. Não é bem assim, até porque uniões desastrosas são mesmo feitas de paradoxos, algo que Thomas Mann, nos Bunddenbrooks (história sobre a decadência de uma família), descreve duma forma deliciosamente sutil: comerciante da aristocracia hamburguesa, o mais velho da linhagem, Gotold, é deserdado ao se casar com “uma loja” – só lendo pra curtir tudo o que o autor quis dizer com isso.
Álvaro, meu pai, seria uma mistura de imigrantes alemães – gente vinda de Berlim antes de 1860, urbanos, profissionais liberais, alguns intelectuais, quase todos boêmios (naquele tempo havia muitos boêmios, mas num sentido mundano, chic como o diabo), tipo homens do mundo, também como se definia até meados de 30/40, quando a capital mundial ainda era Paris que ficava no que hoje vagamente se denomina EU – União Européia – , unidos a um ramo dos Borba (precisamente, do bandeirante Borba Gato, o tal da estátua), portugueses de sangue azul, significativamente alterado pela mestiçagem e as disputas das terras de Santo Amaro, algo que “resolviam” casando-se entre primos irmãos, donde a linhagem não ter durado muito, bem como as respectivas terras.
Conquanto meu avô, Victor, único a ter escapado à cobiça e à tara de sangue, posteriormente haver assumido honradamente o cargo de linotipista do Diário Oficial do Município, bem como uma vasta biblioteca, ter-se casado com Teresa, mulher que era o diabo, a matriarca por excelência e desespero de marido, filhos, noras e netos e bisnetos – filha dum calabrês avarento, dono de praticamente todos os imóveis da rua do Paraíso com uma suave austríaca, advinda dos Hehl de Santa Catarina.
De forma que Álvaro, meu pai, terceiro filho de seis irmãos, quatro varões e duas mulheres, casou-se como Vivien, oficiosamente descendente de colonos italianos chegados em 1900 nas negras terras de Ribeirão Preto – mas a coisa era mais complexa, pois sua verdadeira origem seria algo mais obscura (pra dizer o mínimo) e controversa (e muito mais simples, mais óbvio), envolvendo ciganagem deslavada & campesinato brutal, chafurdando em pântanos de costumes grotescos, sem esquecer as manhas e espertezas, sobretudo daqueles posteriormente donos de terras, gado, usineiros. O que não foi o caso de Vivien.
Repito: de origem obscura e controversa (aliás, vovó Teresa tinha um nome pra isso, um nome e uma explicação lógica), Vivien era filha de Rosa e Dionísio, um casal de fazendeiros arruinados – a mulher analfabeta, ele, jogador inveterado – cuja grande família – constituída por seis mulheres e dois varões apagados, além de três mortos, ainda crianças – migrou pouco a pouco do norte do estado para a capital, mediante as adversas condições determinadas pela Segunda Guerra e a crise do café, instalando-se, a princípio, em casas de parentes e cortiços do Bexiga.
Vivien aportaria por lá na primeira leva, enquanto Álvaro ainda caçava passarinhos no vasto casarão da Rua França Pinto em Vila Mariana. Naturalmente, a guerra também fizera alguns estragos à sua família, mas nada muito importante comparado à dela.
Este é o ponto essencial, o momento do encontro de ambos: 1945, final da Segunda Guerra, a euforia e os bailes do Trianon e Centro do Professorado, a leiteria Campo Belo, o Bar Viaduto na Rua Direita: tudo isso relativizava usos e costumes, aos quais se daria a devida e maior importância em tempos ditos normais. Entre namoro e noivado, casaram-se em 1947.
Vivien, minha mãe, ostentava em seu rosto uma espécie de síntese de todo o capital estético das divas de Hollywood, mas como quem saca sem fundos (o que era a expressão da verdade, pois tudo o que tinha era a duração e a consistência dum cartaz do cine Marrocos). Fisicamente, analisá-la traço por traço revelava-se um exame tão inútil quanto decepcionante, o mesmo que seguir uma pista falsa: eram todos irregulares. Mas vistos no conjunto resultavam na tal síntese deslumbrante e absurda a que chamamos beleza. Conseguia parecer-se simultaneamente com Vivien Leigh, Maureen O’Hara e Heddy Lamar – impossível reservar personalidade bastante para si própria. Mas isso não deve ter ocorrido a Álvaro quando a quis por mulher e mãe de seus filhos.
Vivien: os negros olhos circunflexos abrigavam um demônio fixo de rocha e pássaro, a boca, fina como um risco, subitamente se alastrava nem sorriso esfuziante, falsamente inacessível, marcado por covinhas. Mas a massa de cabelos ruivos ocultava o crânio irregular, onde o nariz despontava atrevido,ligeiramente adunco: Rita Haywoorth com pudor, sem as luvas negras ou o decote expectorante, mas a sugestão velada de tudo isso, estrela duma constelação se movendo para dentro dum universo totalmente improvável, sem deus nem lei, aguardando em suspenso a vinda de Tyrone Power que a levaria para um outro céu de néon e cetim cor-de-rosa – essa garota tão tola, tão simplória, tão Cinderela montada no leão da Metro.
Pouco antes de morrer, colocava batom para assistir aos filmes de George Clooney (que substituiu Antonio Banderas, que substituiu Tyrone Power nas muitas e mesmas e eternas versões de O Zorro).
Mas nem tudo eram flores, considerando-se as sardas de gata irlandesa, suas pernas curtas, o intestino preguiçoso (que acabou matando-a) e apenas um curso primário: detalhes que só a tornavam mais bela, porque as mulheres verdadeiramente belas são as de carne e osso, deste lado da realidade, aquém do sonho, da foto na parede da juventude, das promessas do celulóide e ao alcance dos homens, do amor, de Álvaro, especialmente.
A irmandade materna feminina emergiu com o sonho americano na década de 50 e pergunto-me até que ponto não foram os mesmos os sonhos que assombraram minha infância quando, fascinada, contemplava tia Jane ou tia Marjorie na penteadeira iluminada por lâmpadas de camarim, porque Marjie era cabeleireira tendo, presumo, íntimas ligações com circos e teatros de revista, a mesma relação feérica de rugas prematuras, cosméticas cicatrizes acrobáticas que viviam misteriosamente mudando de lugar ao sabor da fantasia, além desse perfume abafado pela colcha chinesa de péssimo gosto, misturado ao típico ranço de mulher amanhecida que ninguém e todos sabiam o que fazia nas noites de sábado.
A irmandade materna emigrou do interior com a guerra, a crise do café, o cinemascope, o know-how, as raízes cortadas também pela miséria, daí o trabalho nas fábricas de biscoitos, nos laboratórios farmacêuticos, na Casa Anglo-Brasileira, solidariamente amontoados nos cortiços do Bexiga, desmantelados e febris mas obedecendo uma ordem invisível – as leis não escritas dos movimentos migratórios a determinar que os jovens venham na frente abrir espaço para os pais e avós, o suficiente talvez para conter uma cadeira de palhinha na porta ensolarada do beco onde quietamente seria confinada a velhice, a ruína, o orgulho espezinhado, como também os fundamentos do altar da memória, tão mais grandiosa quanto mais distante no tempo e espaço, nos estreitos limites de um beco, de um assento de palhinha.
O pequeno Dioniso, o avô irlandês, jogador e sanfoneiro arruinado, filho único de três fazendas perdidas em mesas de pôquer, cuja qualificação profissional consistia em não ter nenhuma graças à sua alma de moleque e reprodutor passivo de onze filhos, o avô Dioniso depressa arranjou um posto de vigia noturno na CMTC para manter as aparências de chefe de família, enquanto durante o dia lampeiramente fazia progressos na auspiciosa carreira de bicheiro, “Uma verdadeira mina!”, proclamava entre duas risotas velhacas e apostava todo o salário na borboleta. Perseguiu-a até a morte, este bichinho tão poético.
Tia Jane (também morta poucos meses antes de mamãe – a alienação pessoal, o parasitismo e a simbiose familiares e Hollywood são fatais a longo prazo) seria a eterna Miss Cinelândia, por incríveis sistemas paramnésicos, a Jane, namorada do Tarzan, ou Glória Grahame, amante de Lee Marvin, o gangster que lhe atira ácido na face. Ela e Marjorie eram mulheres mais fatais a si próprias, fatias em carne e osso do produto ao avesso do sonho americano, do grande engano acalentado na penumbra das salas de projeção cheias de pulgas de terceira classe, as mesmas que, mais tarde, estariam picando e sugando por baixo da colcha chinesa de péssimo gosto, após o intervalo esquecido do amor entre aquele sonho e este aqui, mais próximo, feito de lençóis gosmentos e mau-hálito, racionalizando o esquecimento dos intervalos espúrios do amor, porque a vida realmente não era tão cor-de-rosa.
Em 1947, o verdadeiro nome do amor vinha impresso em letras douradas, assumia as formas ovais e oblongas das caixas de bombom, brilhava nos créditos e títulos na marquise do cine Marrocos anunciando E O Vento Levou, nos vestidos e toaletes, absurdas simbioses de cortinas velhas, retalhos de sofá e mosquiteiros. Se a invenção é filha da necessidade, em 1947 o pai era Daryl Zannuck.
E a juventude, os bolinhos do entardecer, os tipos mal-encarados, os bondes, as longas filas do pão e novamente os bondes, as matinês dançantes, as novelas da rádio São Paulo. Vivien: cabeça cheia de sonhos, pés plantados na realidade. Ao acordar, lavava o rosto com sabão amarelo espiando pela vidraça o atordoante, fuliginoso casario sob um céu de filme polonês amanhecendo por entre nuvens sujas. Tinha apenas um casaco e um par de sapatos de cor indefinida mas, ao sair, os cabelos ruivos adejavam no espelho do porta-chapéus, deixando um rastro de fagulhas elétricas, um perfume de madressilvas. E tinha dezoito anos. O bastante para ser feliz.
Na realidade, Vivien era filha do vicio com a inconsciência, mas a Álvaro isto importou-lhe um corno: fora definitivamente fisgado. Jovem, ingênuo, o popular “malandro bobo” (imagine-se, ganhou dinheiro vendendo “bônus de guerra”, que Lista de Schindler resiste a isto?) – boêmio demais para se importar, casou-se num pincho.
– Aqui, te cai como uma luva! Max apoiou o livro no ombro do irmão – a diferença entre romântico e sentimental, citou: “Sentimental é aquele que pensa que as coisas duram, romântico é aquele que espera, contra toda a esperança, que as coisas não durem.”, Scott Fitzgerald, fechou o livro.
– Quero que conheça Vivien. Com Lineu, o mais velho, casado, papai morto, você é agora o chefe da família, disse Álvaro. – E não faça essa cara, você terá que amansar a velha: estou apaixonado, Max.
– Vivien! A neta duma cadela irlandesa que abandonou as crias para que o diabo as carregasse! praguejou Teresa.
– Vivien irlandesa? Visto que fugiu com um soldado da cavalaria, a avó só podia ser cigana! disse Liris, a irmã.
– Vivien, uma ruiva meio vampiresca, pai jogador. E bicheiro, piscou a outra, Laís (as irmãs de Álvaro não eram nada bobas. A isto se chama bom senso, preconceitos de classe incluídos). Lé com lé, cré com cré, coisas do gênero.
– Vivien: pai jogador, avó cigana, agora você caprichou, mano! riu, Lineu, congratulando-se intimamente com a burrice de Álvaro.
– Vivien: a mulher mais bela do Trianon, disse Max, a título de consolo – realmente, ele caprichou: você vai se foder, meu querido.
– Vivien, encantado, Álvaro.
Vivien, minha mãe.
(fim da primeira parte, continua na próxima coluna)
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