Para minha satisfação, o filme Hannah Arendt foi rapidamente disponibilizado no Youtube, completo e legendado; era um dos que eu mais queria recomendar aos meus leitores.
Não que eu o considere uma obra-prima da sétima arte. Estou longe de ser um admirador da diretora alemã Margarethe von Trotta, a quem considero inferior a outros cineastas que costuma(va)m incursionar pelo cinema político, como Costa Gravas, Giuliano Montaldo, Francesco Rosi e o falecido Gillo Pontecorvo.
Seu Rosa Luxemburgo, por exemplo, ficou muito aquém da magnitude da personagem histórica que antecedeu Trotsky na firme rejeição dos componentes autoritários que acabariam por descaracterizar completamente a revolução soviética.
Mas, o quarto de século transcorrido entre um e outro filme lhe fez bem (assim como à atriz Barbara Sukowa, muito melhor no de 2012 que no de 1986).
Se na biografia cinematográfica da Rosa vermelha ela quis abarcar acontecimentos demais e não soube separar o fundamental do dispensável, em Hannah Arendt tomou a sábia decisão de restringir-se ao que realmente importava: a cobertura do julgamento de Adolf Eichmann e o fogo amigo que Arendt enfrentou por não ter abdicado do seu espírito crítico.
Judia alemã, ela se refugiara nos EUA e por lá ficou, tendo se tornado uma respeitada professora de filosofia, autora de um livro famoso: Origens do totalitarismo.
Quando agentes israelenses sequestraram o criminoso de guerra nazista na Argentina, em 1960, Arendt convenceu a revista New Yorker a designá-la para a cobertura do julgamento de cartas marcadas que o Estado judeu encenaria para dourar a pílula da execução, confundindo justiça com uma vendeta subsequente a um ato de pirataria (as bestas-feras da Operação Condor agiriam da mesmíssima maneira, mas sem o cinismo de tentarem legitimar a lei das selvas).
Embora não tivesse denunciado a ilegalidade e imoralidade intrínsecas àquela farsa judicial, Arendt recuperou-se ao destoar da linha justa israelense, que erigia Eichmann num monstro, com redobrado furor em função da má consciência: perseguidos durante milênios, os judeus, lá no fundo, sabiam muito bem que haviam cometido um erro terrível ao desrespeitarem a soberania de um país que nem inimigo era (a Argentina), bem como que, não tendo sido capturado em território israelense, Eichmann só poderia ser julgado por um tribunal internacional como o de Nuremberg.
Vilificavam-no ao máximo, da forma mais estridente possível, para abafar os tímidos posicionamentos discordantes. Começavam a incidir nas mesmas práticas que tanto haviam recriminado nos nazistas.
Arendt, contudo, teve a coragem moral de, nos seus artigos para a New Yorker (depois reunidos no livro Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal) apresentar o réu apenas como um burocrata medíocre, um pau mandado, um elo a mais da engrenagem totalitária.
[É como sempre vi os Ustras, Curiós e delegados Fleury: tão primários e tacanhos que nem sequer aquilatavam o quanto seus atos eram hediondos. Mereciam expiar seus crimes em longo cativeiro, claro, mas muito mais culpados foram os que tinham plena consciência do que faziam ao abrirem as portas do inferno. Oportunistas como o Delfim Netto, que lhes retiraram as focinheiras ao assinarem o AI-5.]
Outra heresia de Arendt foi apontar a cumplicidade de alguns judeus com os carrascos: os chamados conselhos judaicos, na Alemanha e na Polônia, haviam ajudado os nazistas a confiscarem bens, arrebanharem as vítimas e as enviarem para os campos de concentração. Era uma informação que preferiam esconder, por motivos propagandísticos óbvios.
Foi o suficiente para desabar uma tempestade de críticas sobre Arendt, que passou a ser tão estigmatizada pelos judeus (inclusive os progressistas), como, digamos, Joaquim Barbosa pelos petistas.
Ela foi de uma dignidade exemplar, não recuando um milímetro.
Daí merecer hoje nosso enfático reconhecimento, não só por pela relevância e atualidade de sua obra, mas também por haver sido uma pensadora que teve o vislumbre do ovo da serpente e se manteve fiel a tal visão, resistindo às fortíssimas pressões oriundas do seu círculo. Se dependesse dela, Israel continuaria sendo o dos kibutzim, não o dos pogrons.