No começo, era uma simpatia à distância, de falar boa tarde, oi, tudo bem. Timidez de ambas as partes. E só. Se alguém quiser chamar de um encontro improvável, eu diria quase. Incompatibilidade talvez, caso eu não tivesse resolvido driblar meus recalques. Era 2001. Eu havia recém-mudado para a Pça Roosevelt, e nunca me imaginei feliz naquele lugar. Amigo da “gente esquisita de teatro”, que a qualquer momento poderia subtrair minha inocência de marmanjão filhote da classe média criado em apartamentos, bem longe do centro da cidade.
Aquele gente esquisita não tinha nada a ver com o exército de Mário Brancaleone, digo Bortolotto. Era gente que se pintava, ficava pelada – e eu pensava: vão querer comer meu rabo.
Destarte, numa mistura de jequice e natural desconfiança, me aproximei dos Satyros. Leia-se Sade, leia-se Patrícia Aguille mijando no palco e eu de boca aberta, e mais, uma entidade vinda de Cuba que teve – na minha imaginação – generais da ativa e da passiva aos seus pés, cujo título (porque não se trata apenas de um nome) é Phedra de Córdova. E depois de tudo isso, o convívio.
Aquele papo de respeitar as diferenças passou a ser algo menos esotérico para mim: em primeiro lugar, porque somos feitos do mesmo material que pode ser comido por um câncer ou tocado pela amizade. E depois porque não se legisla sobre afetos. Aí vem o imponderável e a escolha. E no final o respeito, que é – vejam só – invariavelmente adquirido e jamais imposto. Simples: não há diferenças porque somos todos iguais, uns com nenhum talento e outros com talento demais. Daí, meus caros, enquanto o imponderável não acaba conosco, prosseguimos fazendo muitas cagadas e alguns acertos, ou seja, escolhemos.
Assim renasceu a Pça.Roosevelt, com talento para aproximar as pessoas. Ivam Cabral entendeu isso. E foi o primeiro amigo que fiz. Aí veio Rodolfo Vasquez e, por último, Alberto Guzik. Como eu disse, eu e Guzik mantínhamos uma distância. Um dia o encontrei no La Barca, tomávamos um inocente café e o tempo ameaçava fechar. No lugar de falar “vai chover hoje”, eu disse: “Guzik, quer ser minha Velha?”
Foi nossa primeira conversa. Um constrangimento, pois ele não sabia do que se tratava e eu não sabia se falava da chuva que ia cair ou do texto que havia escrito. Ele pediu para ler o texto. No final do mês, teríamos as Satyrianas e ficou resolvido que faríamos um test-drive na Velha. Minha Velha. Nossa Velha. Só 20 minutos. Uma limitação de tempo e depois o problema contrário, isto é, Ivam Cabral e Rodolfo Garcia Vasquez fizeram o som e a luz, Josemir Kowalik dirigiu e aquilo ali virou um monólogo pra valer. No final dos 11 meses (tempo que ficou em cartaz), com a entrada do Ponto, interpretado por Chico Ribas, chegávamos a quase 50 minutos.
O primeiro solo na carreira de Alberto Guzik. E ele – sem saber, quem é que podia imaginar? – me deu a oportunidade de ser um Satyro, logo eu, um garoto que cresceu na frente da tevê vendo bangue-bangue e torcendo pelo John Wayne.
A velha apresentadora foi o último palco de sua vida. Não dá para ignorar isso. Excluir a Velha da biografia de Alberto Guzik é tripudiar de sua memória. É negar que Alberto Guzik foi Alberto Guzik, é ignorar a trajetória do homem que deixou de ser pedra para se transformar em vidraça. Para o fechamento do ciclo, só lhe faltava entrar num teatro e passar 50 minutos encarando uma platéia. Faltava A velha apresentadora.
Muita gente torceu o nariz. Diziam que ele não iria dar conta de um monólogo. Diziam que ele era um canastrão.
Um trecho do monólogo da Velha está martelando na minha cabeça, ela dizia: “Esse ventre seco pariu cadáveres, camundongos, a história do Brasil passa por aqui…”
Quem é que podia imaginar que o câncer que matou Guzik começaria exatamente ali, no ventre do palco? Quando ele gozava de uma saúde que contaminava todos ao redor, quando a felicidade dele era euforia, portanto palpável e mais do que visível e mais do que felicidade, e quando – sem saber – finalmente completava o ciclo, ali na nossa frente, e se realizava como ator, quem é que podia imaginar?
Sim, quem é que podia imaginar Guzik-ator? Muita gente que hoje se diz desconsolada, que lamenta a perda do homem de teatro, não só torceu o nariz como ignorou completamente Guzik como ator. Não li uma critica séria sobre o trabalho dele. Apenas oba-oba e notinhas esparsas aqui e acolá. Para dizer a verdade, ele não teve a contrapartida merecida. Eu creio que, ignorando o solo, ignoraram solenemente a trajetória da vida desse homem corajoso, que não tinha que provar nada a ninguém, e que nunca foi tão Alberto Guzik como nesse último trabalho.
Da minha parte, confesso, eu já estava preparado para o desdém: estou acostumado a incorporar a hipocrisia nas coisas que escrevo. A Velha é isso. E Guzik era um escritor/ator, que sabia o que falava no palco – dividia a imundice com a platéia, devolvia a hipocrisia na mesma moeda. Ainda bem que insisti. Apesar de todos os narizes torcidos, ninguém me tirava da cabeça que ele seria “minha” Velha.
Quem viu o espetáculo sabe que não estou exagerando. Ele, além do crítico, do pensador, do incentivador e professor, também foi ator, um excelente ator.
No decorrer de 2009 nos aproximamos, embora continuássemos mantendo distância. Lembro de um comentário que fiz no blogue dele falando exatamente sobre isso. Guzik, sempre generoso, pensava da mesma maneira. Sabia que a nossa timidez viraria simpatia, que viraria afeto, que viraria admiração, e também sabia que no final acabaríamos grande amigos, mesmo distantes e muito diferentes. Tão amigos que eu não o reconhecia no palco ao interpretar a Velha, Guzik me apavorava falando aquele texto brutal, ele achava graça do meu medo.
Nossas estreias deram muito certo, eu como dramaturgo e ele como ator num espetáculo solo, apesar – repito – da omissão e da má vontade da imprensa, que desde sempre não perdeu a oportunidade de cometer suas indelicadezas. A Folha de S. Paulo precisou esperar ele morrer para dizer que eu era o autor da peça: por que essa birra? Era tão simples, era só fazer jornalismo. Pior foi o Estadão, logo o jornal para o qual ele colaborou tantos e tantos anos como crítico cometeu uma grosseria indesculpável no necrológio. Simplesmente ignorou seu último trabalho. Ignorar A velha apresentadora – insisto, repito – é ignorar todo o percurso dele como homem de teatro. Será que é tão difícil de entender? Uma trajetória que culminou nesse espetáculo, que fechou o ciclo de sua vida.
Eu lamento muito. Mas sabem de uma coisa? Não vou ficar aqui reclamando, encheu o saco. Para mim, basta saber que foi A velha apresentadora que o realizou plenamente no palco – ela é o resultado de todos os Guzik, a trajetória cumprida. Quando eu penso nisso, me encho de satisfação e me sinto em paz comigo mesmo: além de amigo, agora sou companheiro de sua memória. Uma espécie de confidente para a eternidade. Isso que importa. Aliás, segundo relato do Ivam Cabral, a Velha foi o último texto que o ocupou e o distraiu no período cruel que passou internado no hospital Santa Helena.
Caro Guzik, eu ia terminar esse texto dizendo que estou mais sozinho que você naquele monólogo. Mas não é assim, muito pelo contrário. Eu fico muito feliz por ter participado de sua felicidade e de sua história, na alegria e no sofrimento. Tenho sua companhia para sempre. Só me resta agradecê-lo e, como vocês dizem aí no teatro, Evoé.