Existe um consenso quase universal sobre a insólita truculência do nazismo. Até os atuais simpatizantes daquele doentio movimento político-militar (que são ainda muitos, especialmente na América do Sul) nem sempre ousam se definir como nazistas.
A crueldade do nazismo ficou evidente por causa de suas ações massivas e o caráter público de seu acionar. Pela primeira vez na história, os europeus sentiram as mesmas angústias e sofreram do mesmo sadismo que os países coloniais que, antes deles, haviam sido vítimas da crueldade superlativa da colonização espanhola, portuguesa, belga, francesa e, em certa medida, britânica.
Foi a primeira vez que as grandes massas, e até as novas instituições como a ONU, perceberam uma diferença notável entre dois tipos de direitos: (1) os convencionais, criados pelos diferentes estados e destinados a proteger os interesses de suas elites. (2) os direitos naturais, aqueles que são impostos pela própria condição humana: ou seja, pela biologia, o psiquismo e afetividade dos humanos, algo que é regido pelas leis da matéria viva e não pela lei das togas.
Com efeito, se um cidadão deve pagar 20% ou 40% de seu salário em impostos é um assunto convencional. Pagar mais imposto pode muito bom num país que protege o cidadão, e pode ser um abuso num país atrasado que esbanja esse dinheiro. Em fim, não há nada universal sobre o pagamento de imposto. Os critérios são convencionais.
Inversamente, há critérios objetivos que diferenciam o fato de que o Estado pague uma aposentadoria a todo trabalhador, e o fato de que os que trabalham devam pagar uma previdência privada. Quando não há aposentadora pública, você obriga às pessoas a trabalhar até morrer, às vezes, mesmo doentes, incapacitadas, passando fome e desabrigo, enquanto os investidores em aposentadorias privadas enchem seus cofres. Quando há uma aposentadoria digna, você pode aproveitar o final de sua vida para ser feliz.
Ora, o direito a uma vida feliz não é um “direito burocrático”, mas uma condição que a natureza oferece a todos os seres vivos. Ou seja, é um direito natural. Que um direito seja natural significa que ele deve valer para qualquer humano em qualquer circunstância. Isso, porém, não significa que o direito positivo vai acolher esses direitos naturais. De fato, você conta com os dedos os países cuja legislação acolhe os principais direitos humanos.
Muitas vezes se fala que a democracia é um direito natural. Em realidade, a democracia pode ser entendida como o sistema que permite a representação dos direitos fundamentais de todos os humanos. Com esta definição, há apenas uns 30 países democráticos no mundo. A outra maneira de ver a democracia é aplicando este termo (que tem muito prestígio e soa muito bem) a uma simples agenda eleitoral. O Brasil é um dos casos mais marcantes dessa democracia “virtual”.
Num estudo recente do Congresso em Foco, mostra-se que apenas 34 de 511 deputados que votaram no domingo 17 de abril, foram eleitos com votos próprios (vide).
Acrescente ainda o fato de que milhões de pessoas (mesmo “com nível superior”) nem lembram o nome do deputado que votaram há dois anos, ou, então, não conhecem o programa de seus candidatos. Pior ainda, você não pode “cobrar” atitude de seu deputado, porque ele nunca está disposto (salvo num décimo dos casos) e, se prometer algo, o mais provável é que não cumpra.
Mesmo assim, esta democracia é melhor que uma ditadura, pois permite o direito de expressão, embora limitadíssima, e poderia preparar os cidadãos (se a vida continuasse normal) para algum dia reclamar, elaborar e atingir seus verdadeiros direitos.
Portanto, quebrar a continuidade da democracia (mesmo “virtual”) é uma maneira de tornar cada vez atingir os direitos naturais, como o direito à vida digna, à educação, à não perseguição por motivos religiosos ou ideológicos, a integridade física e psíquica, a não ser massacrado pela polícia, a não ser torturado, a poder dispor de seu sexo e de seu corpo em geral (especialmente no caso das mulheres).
A interrupção do movimento democrático quando as elites consideram o momento certo para impor seus próprios candidatos é, simplesmente, um ato de violência contra os direitos humanos que possui diversos nomes em diversas línguas.
Putsch – em alemão
Coup d’Etat – em francês e em inglês (por adoção)
Colpo di Stato – em italiano
GOLPE – em português e espanhol
O golpe brasileiro fantasiado de impeachment é chamado por seu verdadeiro nome até em sisudos veículos germânicos como Die Spiegel, que se refere a ele como Kalter Putsch (golpe frio; vide).
The Guardian, Mediapart, Liberation, L’Humanité, Manifesto e outros, também usam esse nome, e, mesmo aqueles que não querer usá-lo, como o NYT, descrevem o circo contra Dilma Rousseff de tal maneira que não deixam outra palavra para mencioná-lo.
Até jornais com um público de direita como The Economist chamam os processos da gangue de Curitiba de weird justice, e um grande grupo de veículos (que não é divulgado pela mídia brasileira) se espanta que entre os julgadores do “crime” estejam dúzias de deputados acusados de corrupção, e que o processo esteja dirigido por um criminoso tão evidente, que até o STF não conseguiu blindar totalmente.
A mídia brasileira, os juízes e o pior da política insistem em que isto não é golpe. Eles aproveitam o ódio das classes médias e altas, o provincianismo e isolamento de grande parte da população (mesmo a progressista) e o ressentimento difuso de diversos setores.
Se não fosse trágica, seria divertida a teimosa afirmação dos políticos e juristas que dizem que o impeachment está na Constituição. Ora, todos sabem disso. Por que tanta ênfase? E, aliás, o que isso significa?
Um golpe contra a democracia é a violação de um direito natural massivo e, portanto, não é um problema nacional. É um problema de direito internacional, e deve ser definido e julgado de acordo com esse direito.
As organizações internacionais propugnam sanções contra os golpistas, embora poucas vezes tenham capacidade de fazê-las cumprir. Num país com a posição geopolítica e os atributos econômicos e demográficos do Brasil, o golpe, além de uma violação aos direitos de grande parte dos cidadãos, é um perigo para a estabilidade da região, e um enorme complicador para a política internacional.
Quando um bando de gangsteres, politiqueiros de taberna e vigaristas milagreiros, apoiados por uma mídia em alto grau de putrefação, e por juristas enfeitiçados pela sede de vingança, decide mudar de governo como se muda de gravata em função de seus interesses imediatos, a segurança global está sendo colocada em risco.
Se a comunidade internacional acha que deve tolerar o golpe brasileiro, porque está na constituição desse país, também deveria tolerar as práticas de alguns países islâmicos que matam os “blasfemos” por mutilação. Afinal, esse tipo atroz de assassinato está autorizado no versículo 5:33 do al-Qur’an. Os muçulmanos poderiam pensar: “Por que nosso livro sagrado é menos respeitado que o livro sagrado dos brasileiros?”
PS – A temerosa conduta da presidente na ONU faz pensar que o golpe brasileiro não terá grande repercussão internacional, como teve o da Honduras ou até o do Paraguai. Isso não é por indolência da comunidade internacional, pois há numerosos grupos que apregoam “No coup d’etat in Brazil!”. O problema é a dificuldade para defender quem não quer ser defendido, mantendo-se numa posição chauvinista obsoleta e idealista.
Se não fosse pela pressão internacional, no Brasil haveria ainda escravidão oficial (a outra continua existindo), não haveria algumas leis (que não se cumprem) em prol dos direitos humanos, e ainda teríamos como governo a casta imperial. Negar-se a proclamar “precisamos ajuda contra o golpe” me faz lembrar a arrogância dos movimentos armados que acreditavam que eles sozinhos poderiam derrubar as ditaduras da América Latina. Saibam os que não conhecem o caso, que a ditadura Argentina, a mais sangrenta de Ocidente desde 1945, só caiu porque perdeu uma guerra marítima.
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