Márcia Denser*
"Quando o passado não ilumina o futuro, o espírito tateia no escuro."
Montesquieu
Uma das estratégias mais perversas da ideologia neoliberal do pensamento único é desconsiderar as tradições nacionais, o que inclui enxertar outras sem ressonância no passado coletivo, a exemplo dessa bobagem recente de comemorar o Hollowen, o Dia de Ação de Graças (Thanks Given), sem contar aquela outra que procura incutir a idéia de rotular tudo – fatos históricos, pessoas, modos de vida, expressões idiomáticas, produtos e produtores culturais, etc. – como "antigo", "old fashion". Porque mais importante que a intervenção militar norte-americana é seu domínio ideológico-cultural, e mais importante ainda do que este só mesmo o entreguismo da elite local, sócia menor do subcapitalismo.
Mas a história recente registra três setores em que o Brasil se projetou mundialmente – na música, com a Bossa Nova, na novela de televisão e no futebol – e estas tradições nenhum neoliberalismo tasca. Sobretudo no futebol, porque em primeiro lugar aqui não se aplica aquela máxima inventada por mim mesma: "brasileiro não só não tem memória como antecipa o esquecimento".
Quando a tradição é gloriosa (e quanto à nossa gloriosa tradição futebolística) não só nos lembramos como guardamos como algo vivo em nosso espírito cada passe, cada drible, cada incidente, cada detalhe, cada lenda, cada fatóide de cada Copa do Mundo em que fomos campeões, seja 58, 70, 62, 94 ou 2002. E essa consciência minuciosa não parece ser apenas nossa. Virou uma espécie de patrimônio universal.
É isso que sentimos quando aquele sociólogo e professor da Universidade de Kassel faz uma análise comparada das nossas vitórias na Copa e os altos e baixos da política brasileira após-50, concluindo que tais vitórias ocorrem quando os movimentos sociais e as instituições democráticas prevalecem, reacendendo as esperanças populares, confessando-se, de passagem, um apaixonado por nosso futebol em geral e Mané Garrincha especialmente; ou quando vemos nesta Copa jogadores de várias partes do mundo repetirem as análises e palpites de nossos cronistas esportivos como axiomas ou verdades irrefutáveis, tipo, que nosso time reserva poderia ser titular em qualquer parte do mundo.
Em futebol somos autoridade, porque tudo nos autoriza: nossa excelência, nossa maestria, nosso futebol arte, nossos craques, nossos resultados – cinco vezes campeões mundiais. Não, nesse departamento ninguém está de touca, na ignorância, no escuro, sem ufanismos idiotas, sem farisaísmos hipócritas, sem exotismos estúpidos e para além das mentiras, omissões e distorções duma maldita elite entreguista, perversa e burra, somos 186 milhões de iluminados!