Márcia Denser
No compasso de espera e especulação – sem contar os exercícios de futurologia – de mais um ano político que, no Brasil, só começa para valer depois do Carnaval, encontro um texto cujo simplicidade e clareza fulminante chega a cegar, nos fazendo entender, de uma vez por todas e para sempre, a globalização como símbolo do “fim do espírito de época”, relembrando Francis Fukuyama, seu garoto-propaganda no Pentágono que, em 1992, anunciou ao mundo “o fim da história”.
Mas será certo, como acreditam Fukuyama e outros, que a totalidade da história humana foi uma progressão tortuosa em direção a seu ponto máximo – o consumidor americano? Será que os benefícios do mercado podem ser estendidos a ponto deste modo de vida se tornar disponível para o mundo inteiro? Porque se não for este o caso – como sabemos que não é – todas as outras culturas terão sido destruídas em vão. Lá vai o texto:
“O que é a globalização afinal? O confronto central do nosso tempo, do mercado contra o Estado, do setor privado contra os serviços públicos, do indivíduo contra a coletividade, dos egoísmos contra as solidariedades. Por todos os meios, o mercado procura ampliar sua área de intervenção em detrimento do Estado, razão pela qual as privatizações se multiplicam em toda parte. Na realidade elas são simplesmente transferências para o setor privado de fragmentos (empresas, serviços) do patrimônio público. O que era gratuito (ou mais barato) e direito do cidadão, se torna pago e caro.
Aliás, os serviços públicos são o patrimônio dos que não têm patrimônio.
A globalização é também, pelo mecanismo das trocas comerciais, a interdependência cada vez maior das economias de diversos países. Apesar do fluxo de exportações e importações aumentar regularmente, a globalização das trocas se refere sobretudo ao setor financeiro, porque a liberdade de circulação dos fluxos de dinheiro é total. Para multiplicar seu capital, as pessoas que detêm fortunas podem optar por investir na Bolsa (não importa em que Bolsa do mundo, uma vez que os capitais circulam livremente) ou num projeto industrial (criação de empresa que fabrique produtos de consumo) obtendo rentabilidade média entre 6 e 8% na Europa. No entanto, no caso de um investimento na Bolsa, a rentabilidade pode chegar a níveis elevadíssimos: na França, em 2006, os mercados conheceram uma alta de 17,5%, na Alemanha de 22% e na Espanha de 33,6%!
Diante de diferenças tão grandes, os proprietários de capitais só aceitam investir na indústria (onde são criados empregos) com a condição de que isso lhes renda cerca de 15% ao ano, mas como a rentabilidade na Europa fica entre 6 e 8%, então o que fazem? Investem na China ou Tailândia, países que oferecem mão-de-obra a custos baixíssimos, ensejando o retorno sobre o investimento até maior que 15%.
Assim, para ‘sobreviver’, alguns capitalistas optam por ‘deslocalizar’ (‘desterritorializar’ o capital, conforme Deleuze), isto é, transferir seu centro de produção para um país com mão de obra barata, o que se traduz, nos países ricos, em fechamento de empresas e em desemprego.
A globalização atua assim como uma mecânica de triagem permanente sob o efeito de uma concorrência generalizada. Há concorrência entre o capital e o trabalho. E, como os capitais são voláteis mas os homens não, o capital ganha sempre. Assim como os grandes bancos ditaram suas regras aos estados no século XIX, as multinacionais o fizeram entre 1960 e 1980, os fundos privados dos mercados financeiros têm agora em seu poder o destino de muitos países e, em certa medida, o destino econômico do mundo.
Nessa nova paisagem político-econômica, o global se impõe sobre o nacional, a empresa privada sobre o Estado. Não há praticamente mais distribuição de renda e o único ator do desenvolvimento – segundo dizem – é a empresa privada, o único reconhecido como competente em escala internacional. E assim o único motor em torno do qual – segundo eles – é preciso reorganizar tudo.
Em uma economia globalizada, nem o capital, nem o trabalho, nem as matérias-primas constituem, em si, o fator econômico determinante. O importante é a relação ótima entre esses três fatores. Para estabelecer essa relação, uma empresa não leva em conta nem as fronteiras, nem as regulamentações, mas apenas a exploração mais rentável que ela possa fazer da informação, da organização do trabalho e da revolução da gestão.
Isso produz sistematicamente uma fratura das solidariedades dentro de um mesmo país. Ocorre assim um divórcio entre o interesse das empresas e os interesses da coletividade nacional, entre a lógica do mercado e a lógica da democracia.
As empresas globais fingem que não têm nada com isso: elas sub-contratam e vendem no mundo inteiro. E reivindicam um caráter supra-nacional que lhes permita atuar com uma grande liberdade porque não existem instituições internacionais com caráter político, econômico ou jurídico em condições de regulamentar eficazmente seu comportamento.
A globalização constitui assim uma imensa ruptura econômica, política e cultural. Ela submete os cidadãos a uma regra única: ‘adaptar-se’. Abdicar de qualquer vontade para obedecer unicamente às injunções anônimas dos mercados. Ela constitui o ponto de chegada final do economicismo: construir um homem ‘mundial’, esvaziado de cultura, de sentido e de consciência do outro. E impor a ideologia neoliberal em todo o planeta.”
Quanto a nós, brasileiros, mais receptores do que produtores dos efeitos dessa nova versão da velha ordem mundial, a globalização funciona como uma espécie de “ideologia de segundo grau”, que esconde e revela nossa realidade material eternamente condicionada por estímulos que vêm de cima (do topo da pirâmide) e de fora (do centro).
Mas, seja onde for, a globalização é apresentada como inexorável – não parece haver vida fora do consumo conspícuo para poucos e necessidades negadas para quase todos. Contudo, nos furtamos à necessidade de imaginar a possibilidade de um futuro diferente. E esta é a limitação fundante do pensamento contemporâneo e uma das razões por que é chamado de “pensamento único”.
Por ora, creio que basta termos consciência desse processo em curso, até porque, segundo a quadrimilenar sabedoria chinesa, em qualquer situação humana – histórica ou política ou social – quando determinadas condições chegam ao ponto máximo, o movimento se reverte em seu oposto, porque esta é a lei do universo.
[1] Publicado em “Les dossiers de la mondialisation”, Manière de voir de Le Monde Diplomatique – janeiro-fevereiro de 1007 – O mercado contra o Estado, Ignácio Ramonet, tradução de Emir Sader.