Conheci a obra de George Orwell bem tarde, e não foi por causa de “Revolução dos Bichos” nem por “1984”, livros que a escola me obrigou a engolir quando tinha 16 anos. Um crime. Aliás, já passou da hora de suprimir a literatura do currículo escolar. Passou da hora de suprimem as escolas da vida dos adolescentes também… e eles igualmente podiam seguir o conselho de Nelson Rodrigues e suprimir-se a si mesmos, e só voltar depois dos 30. Porém, não é disso que tratarei agora. Quem quiser saber o que penso a respeito, dê uma googada e leia “Bukowski contra o crime”.
Eu dizia que George Orwell me ganhou com o ensaio “Dentro da Baleia” e os outros ensaios que acompanham o título do livro. Depois, li “Na Pior em Paris e Londres” e, desde a semana retrasada, estou me esbaldando com o livro “Como morrem os pobres e outros ensaios”.
Aos livros. Vou falar de vários como se fossem o mesmo, sem ordem de chegada ou partida. Começamos com as crônicas das agruras que o escritor/mendigo/ presidiário/ viveu em Londres e arrabaldes na primeira metade do século passado. Pois bem, lidas depois de 80 anos, despertam mais curiosidade pelo estilo direto de Orwell do que pela miséria propriamente dita, que não é muito diferente da miséria humana que observávamos há pouco tempo na Cracolândia e que observamos no Shopping Higienópolis. O posicionamento que Orwell assume diante dos rebotalhos que o acompanham em albergues, hospitais para indigentes e numa prisão, lembra muito – nem precisamos guardar proporção – a tragédia que Primo Levi relata em “É isto um homem?”. Explico. Os dois não se apegam nem remoem a desgraça que os acompanha, mas atuam como observadores do entorno: porque, antes da humilhação, e depois também, são criadores independentes e a matéria-prima deles, afinal, é a mesma do … Zeca Pagodinho. Tanto faz se fulano escreve a partir de um campo de concentração em Birkenau ou debaixo de uma jaqueira em Xerém, cercado por amigos, leitões e galinhas d’angola, tanto faz se se cobre de andrajos ou veste black-tie; a condição humana é a mesma para todos, independentemente do endereço, do tempo e do assunto. Manifesta-se na alegria e na tristeza, na guerra e na paz, na miséria e na prosperidade e assim por diante.
O que faz a diferença de um artista para um charlatão é o estilo. Esqueçam Andy Warhol, esse era uma exceção: um picareta com estilo. O que eu quero dizer é o seguinte: se o cara for honesto consigo, e se ele for um George Orwell – a chance de o estilo prevalecer é muito grande.
No caso de Orwell, a elegância e a objetividade de sua escrita chegam a ser chocantes se comparadas àquilo que lemos hoje em dia, não porque nossos ensaístas são privados de sagacidade, ou não dominam a retórica e/ou abusam de uma erudição que é mais (ou somente) citação de Batman & Robin, digo, Walter Benjamin & Adorno do que sabedoria. O fato de escreverem mal e serem chatos pra cacete não é o pior. A questão é que para se persuadir o leitor (espectador ou o zumbi na frente da internete), antes de tudo, urge ou urgia – em tese – honestidade intelectual e liberdade, artigos raros já no tempo de Orwell, e muito mais nos dias que seguem: tempos de editais, bolsas, conchavos, projetos mil e inclusão a qualquer custo. Aqui em São Paulo, por exemplo, foi instituído o “Prêmio Governador do Estado”, e existe uma categoria chamada “inclusão cultural”. São 520 mil reais em prêmios. E aí eu fico imaginando o governador Alckmin a espetar uma medalha no peito de um Pasolini do Jardim Estrela Dalva. Ou se faz inclusão, ou arte, ora cazzo!
Nosso “artista” está mais preocupado em justificar seu “projeto” e fazer assistência social do que subverter a ordem; mais vale uma planilha bem feita do que um axioma zombeteiro que eventualmente possa destoar dos documentos exigidos pelos burocratas do departamento de seleção. A pergunta é: mesmo sem liberdade, vendidos prum capeta de quinta categoria, prosseguiremos … escrevendo livros?
Falando para quem? Quem é que, hoje, está interessado em liberdade e honestidade intelectual? Os 7,5 milhões de leitores do padre Marcelo? Aliás, tava fazendo uma conta: são 7,5 milhões de pessoas que jamais vão ler George Orwell. Verdadeiro rapto. Se eu dissesse que esse padreco deseduca criminosamente milhares de leitores, eu estaria tendo um chilique, ou simplesmente estaria corroborando as profecias de Orwell?
Isso é o equivalente a admitir uma derrota fragorosa? Claro que sim: vexame completo, uma lavada. Uma coisa, porém, é admitir a derrota, outra completamente diferente é resignar-se.
Orwell é o profeta da não-resignação.
Vivemos tempos de muita demagogia e marketing. De modo que o que se vende e o que se consome em todas as frentes – salvo as exceções de praxe – são oportunidades de negócios, tudo em nome da arte menos a arte: como se tetas brotassem do ventre da baleia que virou casa da mãe Joana.
Portanto, além da questão das misérias que somente fizeram se agravar nos últimos 80 anos, também a alma humana definhou, perdemos em liberdade e individualidade, essas duas forças que juntas poderiam ser chamadas George Orwell – o homem que investiu bravamente contra os totalitarismos de sua época.
Orwell jamais se omitiu. O tempo provou que muitas vezes ele esteve certo e sempre esteve sozinho. Uma pena que tenha perdido a batalha porque os totalitarismos continuam aí, firmes e fortes, repaginados, cobrando juros de 20% ao mês e oferecendo a paz dos cemitérios para seus clientes e correntistas. Creio que sufocar a possibilidade do grito individual é o pior dos crimes. Quem foi o último que gritou no deserto brasileiro, o chato do Glauber Rocha?
A consequência desse sufocamento é visivel na “arte” e nos artistas mequetrefes que nos são impingidos goela abaixo, visível na repetição (ou nas malditas “releituras”) do original que perdeu o viço e virou lixo reciclado; os técnicos e os higienistas que tomaram os lugares dos artistas não me deixam mentir, né não dr. Dráuzio?
Ao contrário do que nos ensinam as políticas de correção (e de acordo com as previsões mais sombrias de Orwell), o coletivo existe somente em função de excluir o indivíduo e sufocar sua voz original. Vejam só o que o autor de “Dentro da Baleia” escreveu em 1940 : “(…) quase com certeza estamos rumando para uma era de ditaduras totalitárias – uma era em que a liberdade de pensamento será o princípio de um pecado mortal e mais tarde uma abstração sem sentido”.
No alvo: o pensamento e a originalidade jazem mortos e enterrados; atingimos um patamar cultural que se localiza abaixo daquilo que Orwell chamaria de “abstração sem sentido” … e abaixo daquilo que os Visigodos chamariam de cu de cobra. O que é a Ivete Sangalo senão um Hitler vestido de Carmem Miranda? Ai, ai, ai se eu te pego…
Eric Blair, que depois passou a assinar George Orwell, escreve limpo, e escreve bem porque pensa bem e – repito – jamais se omitiu diante de sua consciência, nem quando elaborou uma lista de “criptocomunistas” para o governo britânico e dedurou Chaplin, Shaw e J.B. Priestley.
Sacana? Talvez, porém verossímil. Vejam só: “(…) a literatura estará condenada não somente em países que conservam uma estrutura totalitária; mas qualquer escritor que adote a perspectiva totalitária, que encontre desculpas para a perseguição e a falsificação da realidade, se destrói como escritor. Nenhuma diatribe contra o ‘individualismo’ e a ‘torre de marfim’, nenhum chavão religioso do tipo ‘a verdadeira individualidade só é alcançada através da identificação com a comunidade’, pode esconder o fato de que uma mente comprada é uma mente podre (…) em algum momento do futuro, se a mente humana se transformar em algo totalmente distinto do que é agora, talvez aprendamos a separar a criação literária da honestidade intelectual (…) A imaginação não se reproduz em cativeiro”.
Não trair a si mesmo é um dos pontos básicos para registrar algo que valha a pena ser lido,refletido e apreciado depois de cem anos. Com certeza, esse é o recado de Orwell. Infelizmente, Orwell errava pouco e entendia como nenhum outro de previsibilidades. Tava na cara que o gado acabaria se adaptando ao cativeiro ( ou “coletivo”) chamem como quiser.
A imaginação, eu acrescentaria, nao se reproduz em gaiolas de ouro nem em cooperativas de periferia. Impressionante, esse Orwell: apontando o dedo para a omissão dos intelectuais de sua época em face do massacre que a extinta URSS promovia contra jornalistas e escritores, ele conseguiu se projetar no tempo e vislumbrou as torres do edifício Abril, os saraus esotéricos da nossa querida e fofa Vila Madalena e os puxadinhos irados do Capão Pecado, incluindo todos no mesmo balaio/ cativeiro.
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Mas não é só isso. George Orwell teve a sorte de testemunhar uma situação extraordinária onde esse coletivo (sempre nefasto) condensou-se diabolicamente dentro de um só indivíduo. E escreveu um ensaio que, a meu ver, é muito mais do que um debruçar-se sobre determinado tema, trata-se de um documento precioso do nosso tempo, cujo título é “A vingança é amarga”, esse ensaio faz parte do livro “Como morrem os pobres”.
Orwell acompanha um judeu baixinho recrutado pelo exército americano que tinha por missão interrogar prisioneiros de guerra. Conduzido até um hangar,depara com supostos oficiais da SS empilhados uns sobre os outros em condições sub-humanas. Entre eles, um infeliz que “tinha pés estranhos e horrivelmente deformados. Os dois eram bastante simétricos, mas haviam sido golpeados até assumir uma extraordinária forma globular que os tornava mais parecidos com cascos de cavalo do que com qualquer coisa humana”.
“O verdadeiro porco!” – segundo o judeuzinho que conduzia Orwell. De repente, o interrogador “dá um terrível pontapé com sua pesada bota do Exército no inchaço de um dos pés deformado do homem prostrado”.
Era quase certo que aquele homem prostrado,o ex-oficial nazista, havia dirigido campos de concentração e comandado torturas e enforcamentos. Orwell contempla a miséria deplorável do infeliz, e constata que a versão contada pelo judeu-americano – de que se tratava mesmo de um grande filho da puta, um porco nazista – provavelmente era verdadeira, e chega à seguinte conclusão: “a figura monstruosa contra a qual havíamos lutado por tantos anos, se resumia àquele deplorável infeliz, cuja necessidade óbvia não era de punição, mas de algum tipo de tratamento psicológico”.
Em seguida, reflete sobre a selvageria de ambos, do judeu que agora subjuga, e do alemão prisioneiro que é subjugado. Na verdade, é muito mais do que uma reflexão. Quase uma oração. Orwell consegue, diante de uma cena grotesca, atualizar o Pai Nosso: “Perguntei a mim mesmo se o judeu estava de fato tendo prazer com aquele poder recém-descoberto. Concluí que não estava se deleitando realmente com aquilo, mas apenas – como um homem num bordel, ou um menino fumando seu primeiro cigarro, ou um turista vagando por uma galeria de arte – dizendo a si mesmo que estava tendo prazer e se comportando como havia planejado se comportar nos dias que estava impotente. É absurdo culpar qualquer judeu alemão ou austríaco por dar o troco aos nazistas (…) aquela cena e muitas outras coisas que vi na Alemanha deixaram claro para mim que a idéia de vingança e punição é ilusão infantil. Para ser exato, não existe vingança. A vingança é um ato que se quer cometer quando se está impotente e porque se está impotente; assim que o sentimento de impotência desaparece, o desejo se evapora também”.
Eu chamaria de “A Oração Possível”. George Orwell consegue ser mais cristão do que o próprio Cristo porque elimina o sentimento (ou a condição) de culpa da equação que Jesus ensinou aos homens. É como se ele dissesse: Eliminamos o sacrifício e/ou a hipocrisia de amar quem nos odeia. Você, homem, não sabe o que está fazendo: apenas é um monstro circunstancial que não tem condição de perdoar nem de ser perdoado, portanto você é tão inocente e tão impotente quanto seu algoz.
Embora, aqui do fundo do meu coraçãozinho sadomasoquista e cristão, eu teimosamente continue insistindo que sem culpa não atravessaríamos uma rua, sem culpa não conseguiríamos sequer uma ereção decente, ah, sem culpa o homem não toleraria o semelhante e nem a própria sombra, mas isso é coisa minha, deixa pra lá. Enfim. Orwell põe o coletivo no seu devido lugar, e segue essa linha de raciocínio até o final do belo ensaio.
Eric Arthur Blair, filho de mãe com ascendência francesa e de um oficial da marinha britânica, nasce em Mothiari, na Índia, sob domínio inglês. Sim – para quem ainda não sabe – ele era indiano. Bem cedo, ainda criança, é levado de volta para a Inglaterra e fica lá até completar dezoito anos, quando retorna à colônia para servir à polícia de “sua majestade”, mais precisamente na Birmânia, corre o ano de 1922. Nesse período aguçou o sentimento de inconformismo contra a política imperialista britânica, sobre a qual escreveu depois de desertar em 1927: “Servi na polícia das Índias durante cinco anos, ao longo dos quais passei a odiar o imperialismo, que eu próprio servia, com uma força que ainda hoje eu não sei explicar”.
O romance “Dias na Birmânia” e vários ensaios, como “Dentro da Baleia”, “O enforcamento” e “O abate de um elefante” são frutos desse período, desse ódio “inexplicado”. Nessa mesma época, Orwell põe a santidade de Gandhi em xeque: “Santos devem ser culpados até que se prove sua inocência”. O autor de “1984” acreditava que Gandhi era mais vaidoso que ele; engraçado, toda vez que vou almoçar no Nutrisom, o restaurante natureba que se localiza defronte o pernil do Estadão, eu penso nisso – genial.
George Orwell tinha o dom de pairar acima das calamidades que escolheu para si e acima das calamidades que a vida lhe reservou, bordejava não como um anjo, mas como um pensador que sabia agrupar os fatos e as consequências advindas desses fatos em escaninhos diferentes; julgava e acertava não como um árbitro ou um “crédulo intuitivo”, mas como homem de discernimento, e o mais notável, fazia isso sem precisar apelar para a imparcialidade, muito pelo contrário: a Orwell bastava ser livre, não se omitir e ser honesto consigo mesmo. Você, que acredita no Pedro Bial, não tente fazer isso em casa.
No texto que abre o livro “Dentro da baleia e outros ensaios”, cujo título é “Por que escrevo”, ele diz: ” escrevo porque existe alguma mentira para ser denunciada, algum fato para o qual quero chamar a atenção, e penso sempre que vou encontrar quem me ouça.”
Eu ouvi. Simples assim. Ouçam.
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