Prosseguindo em meu ciclo de releituras iluminadas, desta vez é Paulo Arantes que, com seu estilo ácido, mordente, demolidor, nos dá “Notícias de uma guerra cosmopolita” (1). Desde já, com o perdão da inserção apressada, fragmentada e devido à falta de espaço, vou procurar resumir o texto da melhor forma – um artigo denso e extenso com cerca de 60 páginas. Portanto, não vou abrir aspas, uma vez que não vou citar literalmente.
A reviravolta produtiva e organizacional do capital subtraiu a sociedade nacional aos enquadramentos típicos da sociedade militar, a começar pelo recrutamento (nos EUA) que, com a privatização das Forças Armadas, tornou-se um emprego, um posto de trabalho como qualquer outro. A desmobilização ideológica que paradoxalmente acompanhou a Segunda Guerra Fria nos anos 80, sem falar no divisor de águas do Vietnã, quando pela primeira vez começava a ficar invisível para um recruta a razão de ser das barbaridades perpetradas, completou o serviço.
Quer dizer, aumentou o divórcio entre cidadãos e participação militar, pois esta atividade se concentrou numa instituição apartada da massa da população, que para ela se voltava como para um emprego especializado como qualquer outro, e não um dever cívico. Com isso, a guerra foi se tornando um evento simultaneamente corriqueiro e midiático. Mas sociedade pós-militar não é sinônimo de sociedade pacífica, longe disso. Assim, começamos a compreender de que maneira as novas guerras cosmopolitas são um passo adiante rumo a formas mais acuradas de extermínio.
Um mix de capitalismo, segurança & genocídio – eis a neo-santíssima trindade, a essência constituinte do Eixo do Bem.
Porque a selvageria que se consuma na lama incivil das guerras podres (ou de “baixa intensidade” na parolagem neocon) também é tão “pós-militar” ou “pós-nacional”, quanto a tempestade de fogo que desaba dos céus graças a mãos profissionais que se limitam a apertar botões. Contudo, resta a crueldade. A também paradoxal ilimitação da violência de guerra por parte de sociedades pós-militares que decorre, para começar, das novas alternativas táticas do arsenal high-tech.
Assim fica muito mais fácil matar e em massa – dado o “distanciamento” (ou apagamento) dos “alvos”. E com a onipotência, a violência vira uma segunda natureza e o ato de guerra, uma rotina. E rotina profissional, diga-se. Em linha com a analogia entre a desmilitarização profissional da sociedade capitalista contemporânea e o novo padrão pós-fordista de acumulação e desestruturação do mundo do trabalho. Aliás, citando Robert Kurz, não é mera coincidência que o vocabulário desse reaparelhamento militar lembre as campanhas pela “flexibilização da mão-de-obra”. Como no modo de produção capitalista em que, no lugar de “exércitos de trabalho” em massa, aparece um sistema global de forças militares extremamente enxutas e com alta mobilidade. Acrescente-se aí o uso dum armamento high-tech e então se dissolve o paradigma anterior de “exércitos de massa baseados na infantaria e nos veículos blindados”.
Donde a “banalização da guerra”. A refinada deliberação que transparece no próprio design das “quinquilharias” (ou como os experts norte-americanos se referem aos artefatos de guerra lançados “sem risco” (para quem, cara pálida?) a dez mil metros de altura). E isto dá bem a medida – se é que se pode falar assim diante de tamanha hybris – da “alienação” (não há outro termo) que envolve a teoria e a prática da utopia pós-militar da guerra segura, incluindo a idéia não menos “lógica”, de “segurança no trabalho”.
E pensando justamente no absurdo desse conceito estratégico, Naomi Klein vinculou-o ao modo pelo qual os governantes norte-americanos se tornaram imbatíveis na “arte de esterilizar e desumanizar” atos de guerra cometidos em qualquer outro lugar. Domesticamente (nos EUA), a guerra não é mais uma obsessão nacional, é um negócio superlucrativo, totalmente nas mãos de peritos privatizados. E isso gerou uma sociedade alienada e insulada quanto à experiência próxima da violência e da guerra, desumanizada e esterilizada.
Segundo Michael Mann: cristaliza-se uma sociedade de “espectadores esportivos da guerra” – e o primeiro show do novo gênero foi a Guerra das Malvinas, noves fora a do Golfo, etc.etc., o monopólio da guerra conduzida como videogame, brutalmente sustentado pelo mito tecnológicos da “guerra sem baixas”, e a “fúria cega” das populações atingidas, caracterizando a chamada “assimetria no sofrimento”.
O fato é que o discurso do fim da História dividira o curso do mundo: a zona de luz da pós-história e a zona de sombra dos povos ainda históricos – outra estratificação na base da assimetria do sofrimento vivida pelos despossuídos do mundo, igualmente invisíveis ao olhar colonial. Então, tudo se passou como se finalmente a Terceira Guerra Mundial tivesse se tornado realidade em uma guerra do Terceiro Mundo (olha só a “batalha discursiva” que, aliás, nada tem de inócua e muito menos mero jogo de palavras).
Portanto, é nessa fronteira de estratificação militar que se revela a crueldade estratégica da guerra cosmopolita, e essa nova guerra está redefinindo a periferia do século XXI. Para variar, “atrasada”, de um ciclo histórico-militar, logo, “estruturalmente belicosa” e “nacional”. E tal periferia, desde a Guerra do Golfo, exige uma “polícia de fronteira”, eclética, variando das zonas tampão (ou verdes) às guerras ofensivas preventivas.
Então, a coisa fica assim: embora a História tenha chegado de fato a uma cristalização definitiva, esse fecho conclusivo da aventura humana não se mostra nem universal e muito menos homogêneo, como era imaginado o epílogo hegeliano na forma de um Império Mundial. Muito ao contrário, uma linha divisória corta o derradeiro sistema do mundo em duas zonas.
Uma delas é a zona de luz constituída pela “constelação pós-nacional”, segundo a visão eurocêntrica de Habermas, o conjunto daquelas “sociedades maduras e prósperas”, cujo principal eixo de interação é econômico e no qual as velhas regras “realistas” da política de poder e da soberania teriam pouca importância e, cada vez mais, a fabulosa paz kantiana, porém estranhamente confinada no universo restrito dos vencedores, zona livre do fardo da escassez e da luta pelo reconhecimento, enfim, a pós-história.
Na margem oposta, a imensa área cinzenta do mundo (ainda) histórico: nessa terra natal do ressentimento, onde o Estado-Nação continua sendo o principal locus de identificação política, segue seu curso violento a série histórica das lutas pelo poder e seu cortejo sangrento de invasões, expurgos, limpezas étnicas e outras “incivilidades bárbaras”.
O fato é que petróleo (e outras reservas naturais) e guerra não ocupam um lugar trivial nesse cenário dualizado entre a Ordem e a Desordem. Nisso reside o círculo vicioso das guerras no Oriente Médio – a utilização mutuamente destruidora de energia fóssil. Afinal é a base de toda parafernália high-tech: a fim de assegurar o suprimento a preços baixos de energia fóssil para as economias centrais (ou matriz energética da riqueza dessas nações) é preciso desmantelar as estruturas sociais produtivas das fontes supridoras.
Porque o capitalismo movido a petróleo é um regime exportador de entropia, gerando o caos para reproduzir a própria ordem, a rigor uma (des) ordem, já que os Estados da metade ordenada (pós-histórica) do mundo alimentam a “caotização” da outra metade (histórica). Isto é, corrigindo Arantes, dos 99% restantes. Porque a coisa piorou muito desde a escrita deste ensaio, uma vez que tivemos a crise de 2008 e etc.etc.etc. Sobretudo etc.
(1) In Extinção. São Paulo, Boitempo, 2007