Na Faixa de Gaza, a área de maior densidade populacional do planeta, um milhão e meio de pessoas estão sujeitas a constantes punições ferozes e arbitrárias, cujo propósito não é senão humilhar e rebaixar a população palestina, como garantir o esmagamento das esperanças de um futuro decente, dada a nulidade do apoio internacional para um acordo diplomático que sancione o direito a essas esperanças. Eis o resumo das impressões de Noam Chomsky, em visita a Gaza no final de outubro, conforme artigo publicado na Carta Maior, do qual vale à pena fazer uma condensação aos leitores do Congresso em Foco.
Chomsky observa que “basta uma noite encarcerado para se perceber o que é estar sob total controle de uma força externa. E só ficar um dia em Gaza para entender como é tentar sobreviver na maior prisão a céu aberto do mundo.”
A posição das lideranças políticas israelenses quanto ao problema foi significativamente ilustrada nos últimos dias, quando advertiram que “enlouqueceriam (sic) se os direitos palestinos fossem reconhecidos, mesmo que limitadamente, pela ONU.” Essa postura não é nova. A ameaça de ‘enlouquecer’ (nishtagea) tem raízes profundas nos governos trabalhistas dos anos 1950 e seus respectivos “complexos de Sansão”, tipo: “Se nos contrariarem, implodimos as paredes do Templo à nossa volta”. Na época, essa ameaça era inútil, hoje não é mais.
A humilhação deliberada também não é nova, apesar de adquirir novas formas. Há trinta anos, líderes políticos, inclusive alguns dos mais notórios ‘falcões’ (sionistas mais conservadores), apresentaram ao primeiro-ministro um relato detalhado de como os colonos violavam regularmente os palestinos de forma vil e com total impunidade. A analista Yoram Peri notou com repugnância que a tarefa do exército não é a de defender o Estado, mas de “acabar com os direitos de pessoas inocentes somente porque são araboushim (uma ofensa racial) vivendo numa terra que Deus nos prometeu”.
O povo de Gaza foi escolhido como alvo de punições particularmente cruéis. É um milagre o fato de suportarem tal existência. Os acordos de Oslo, celebrados com muita cerimônia em 1993, determinaram que Gaza e a Cisjordânia eram uma só entidade territorial. Os EUA e Israel impuseram sua estratégia de separá-los para funcionar, já naquela época, de forma a barrar um acordo diplomático e punir os araboushim em ambos os territórios.
A punição aos moradores de Gaza tornou-se ainda mais severa em janeiro de 2006, quando eles cometeram um crime hediondo: votaram no “lado errado” na primeira eleição do mundo árabe, elegendo o Hamas. Demonstrando seu “amor pela democracia”, os EUA e Israel, apoiados pela tíbia UE, impuseram um sítio brutal e ataques militares ostensivos logo de cara. Os norte-americanos também recorreram ao procedimento operacional padrão quando “populações desobedientes elegem governos errados”: prepararam um golpe militar para restabelecer a ordem.
O povo de Gaza cometeu um crime ainda pior um ano depois. Barraram a tentativa de golpe, levando a uma forte escalada do estado de sítio e ofensivas militares. Isso culminou, no inverno de 2008-9, na Operação Chumbo Fundido, um dos mais covardes e perversos exercícios de poder militar da atualidade, no qual uma população civil indefesa e enclausurada ficou sujeita à implacável ofensiva de um dos mais avançados sistemas militares do mundo, com o apoio dos EUA.
O presidente Obama não fez absolutamente nada quanto a tais operações, além de “reiterar sua sincera simpatia pelas crianças sob ataque” (muy comovente). A investida, minuciosamente planejada, foi levada a cabo antes da posse de Barack, assim ele apenas declarou que “era hora de olhar para o futuro e esquecer o passado” (de fato, muy amigo).
O modelo de bombardeio da Operação Chumbo Fundido foi analisado cuidadosamente pelo respeitado defensor dos direitos humanos Raji Sourani, natural de Gaza. Ele aponta que o bombardeio concentrou-se ao norte, mirando civis indefesos nas áreas de maior densidade populacional, sem qualquer desculpa do ponto de vista militar. O objetivo foi deslocar a população intimidada para o sul, próximo à fronteira com o Egito. Mas, apesar da avalanche terrorista, os resistentes não se moveram.
Outro objetivo provavelmente era deslocá-los para lá da fronteira. Desde o início da colonização sionista dizia-se que os árabes não tinham motivo para estar na Palestina. Eles podiam continuar felizes noutro lugar e esta é a razão pela qual o Egito não abre sua fronteira, seja para civis, seja para os suprimentos dos quais o país necessita desesperadamente.
Chomsky comenta: “Minha impressão inicial, depois de uma visita de alguns dias, foi de admiração ao povo palestino. Não só pela habilidade de levar a vida, mas também pela vitalidade da juventude, particularmente a universitária, com a qual eu passei um bom tempo numa conferência internacional. Mas também fui capaz de perceber que a pressão pode tornar-se grande demais. Relatos apontam que entre a população masculina jovem há uma frustração crescente e o reconhecimento de que, sob comando dos EUA e de Israel, o futuro não é promissor.”
A Faixa de Gaza parece uma típica sociedade de terceiro mundo, com bolsões de riqueza rodeados por uma pobreza medonha. Não é, entretanto, um lugar “subdesenvolvido”. Na verdade, é “des-desenvolvido”, e de maneira muito sistemática. Gaza poderia ter se tornado uma região mediterrânea próspera, com rica agricultura, uma promissora indústria pesqueira, praias maravilhosas e, como se descobriu há dez anos, constituir uma extensa reserva de gás natural dentro dos limites de suas águas. Coincidentemente ou não, faz já dez anos que Israel intensificou seu bloqueio naval, levando navios pesqueiros em direção à costa.
As perspectivas favoráveis foram frustradas em 1948, quando a Faixa tornou-se abrigo da enxurrada de refugiados palestinos que fugiram ou foram expulsos à força do que hoje é Israel.
Na verdade, eles continuaram sendo expulsos quatro anos depois, como informou o estudioso Beni Tziper. Ele afirma que, já em 1953, “avaliava-se necessário varrer os árabes da região”, isso quando a necessidade de militarização ainda não se insinuava. As conquistas israelenses de 1967 ajudaram a administrar os golpes posteriores. Vieram então os terríveis crimes já mencionados, que continuam até hoje.
É fácil notar os sinais de tais crimes, mesmo numa visita breve. Num hotel perto da costa podem-se ouvir as metralhadoras israelenses empurrando pescadores para fora das águas de Gaza, em direção à própria costa. Assim, eles são levados a pescar em águas que estão poluidíssimas porque norte-americanos e israelenses não permitem a reconstrução dos sistemas de esgoto e energia que eles próprios destruíram. A Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA), que cuida dos refugiados (mas não dos outros moradores de Gaza), recentemente lançou um relatório advertindo que os danos ao aquífero podem em breve tornar-se “irreversíveis”, e que, sem ações reparadoras, Gaza talvez deixe de ser um “local habitável” em 2020.
O resultado da imposição duma “dieta” (controle e sanções na distribuição de alimentos) aos palestinos é que “cerca de 10% das crianças palestinas com menos de cinco anos tiveram seu crescimento atrofiado pela desnutrição. Além disso, a anemia hoje afeta dois terços das crianças mais jovens, 58,6% das crianças em idade escolar e mais de um terço das mulheres grávidas.
Os EUA e Israel querem ter certeza de que nada além da mera sobrevivência seja possível na Faixa de Gaza.
O que devemos ter em mente é que a ocupação e o encerramento absoluto é um ataque em andamento contra a dignidade humana ao povo de Gaza em particular e contra os palestinos em geral. É degradação, humilhação, isolamento e fragmentação sistemática do povo palestino.
Essa conclusão é confirmada por muitas outras fontes. Um físico de Stanford na revista The Lancet, confessando-se horrorizado com o que viu, descreveu a Faixa de Gaza como um tipo de “laboratório de observação da completa ausência de dignidade”, condição que tem efeitos devastadores sobre o bem-estar físico, mental e social da população. A constante vigilância vinda do céu, punições coletivas por bloqueios e isolamentos, invasão de lares e de sistemas de comunicação, além de restrições aos que tentam viajar, casar ou trabalhar, tornam difícil viver de maneira digna em Gaza.
Os efeitos disso são dolorosamente evidentes. No hospital de Khan Yunis, o diretor, que também é cirurgião-chefe, descreve enfurecido tanto a falta de remédios para aliviar o sofrimento dos pacientes, quanto a de equipamentos cirúrgicos mais triviais.
E Chomsky conclui: “Sentir-se impotente e sem esperança é o sentimento mais terrível que alguém pode ter. É um sentimento que mata o espírito e quebra o coração. Podemos lutar contra a ocupação, mas não há como lutar contra a impotência. Aversão à obscenidade combinada à culpa: nós podemos acabar com esse sofrimento e permitir aos resistentes a vida de paz e dignidade que eles merecem.”
Sem contar a ameaça possível (e sinistra): não só o Haiti, mas Gaza também pode ser aqui.