Sylvio Costa
Quem disse que “navegar é preciso, viver não é preciso”, ao contrário do que pensam muitos, não foi Fernando Pessoa, mas antigos navegadores e figuras históricas, como o italiano Pompeu. Pessoa os relembrou no poema célebre, e deu um sentido novo ao verbo ao concluir que “viver não é necessário, o que é necessário é criar”. Na internet, onde circulamos por oceanos de outra espécie, fazemos o mesmo hoje em dia: navegamos, criamos e reinventamos o verbo herdado do poeta.
Mas navegar de verdade, quem navegou foi o espanhol Francisco de Orellana, em1541, quatro séculos antes da morte de Fernando Pessoa. Orellana partiu do Equador, com 57 homens e duas embarcações, para uma viagem que só terminou 18 meses depois, na costa do Oceano Atlântico, no local onde mais tarde seria construída a cidade de Belém (PA). Ele é considerado o descobridor da foz do rio Amazonas.
Passados 465 anos, entre junho e julho de 2006, um grupo de 75 pessoas refez a rota de Orellana, esticando-a até Carajás e depois Brasília. A expedição, feita por terra, água e ar, durou ao todo 35 dias, e percorreu mais de 6 mil km. Somente do Equador até Manaus, trecho inteiramente percorrido por via fluvial, foram 3.500 km. O objetivo era oferecer a 45 estudantes, com idade entre 15 e 18 anos, a chance de conhecer a Amazônia, suas necessidades e aquilo que a ameaça. Para esses adolescentes (conheça alguns deles), certamente, uma viagem ao desconhecido.
Eles foram pré-selecionados por concursos de redação realizados em seus respectivos países, e vinham de nove diferentes nações: Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela. Professores, monitores e técnicos os acompanharam para municiá-los com informações sobre aspectos históricos, geográficos, antropológicos e ambientais da região.
Contratado pela Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), que idealizou o projeto e o executou em parceria com os governos da região e diversas entidades e empresas, o fotógrafo paulistano Sérgio Amaral, documentou tudo. Melhor para a expedição e pra nós. Também pintor e sócio da Agência Pixel, Amaral, 51 anos e 28 de profissão, detentor de um Esso (1992) e de vários outros prêmios, é um craque. Além disso, conhece bem a região, que já percorreu “umas dez vezes”, sempre de máquina na mão.
Sérgio Amaral e a OTCA autorizaram o Congresso em Foco a publicar uma pequena amostra das mais de 16 mil imagens que o fotógrafo registrou da expedição (veja as fotos). Ela antecipa parte do material que a OTCA transformará em livro, atualmente em fase de produção.
Dos Andes à Amazônia
A aventura começou na Cordilheira dos Andes, em Quito, cidade com 1,8 milhão de habitantes (veja a rota). Cercada por seis vulcões e a 2.850 metros acima do nível do mar, a capital equatoriana foi declarada em 1978 patrimônio cultural da humanidade. Além da paisagem natural única, possui obras de grande importância histórica, incluindo a catedral mais antiga da América do Sul.
Foi lá o início da expedição, com pompa e circunstância. A programação incluiu um concerto da orquestra municipal na bela Igreja da Companhia de Jesus. De lá, o grupo saiu de ônibus até Puerto Orellana, onde teve início o trecho fluvial.
No caminho, a altitude chega a 4 mil metros, e o ar rarefeito leva muitos a passarem mal. Uma das primeiras paradas é na Lagoa da Pappalloeta, nos Andes equatorianos, lugar conhecido como Terra das Batatas. Nos Andes, nascem os formadores da bacia amazônica.
O rio Napo é, a partir de Puerto Orellana, a “estrada” por onde segue a expedição, no barco La Mission. Uma estrada de 900 km, que a conduzirá até o rio Amazonas, no Peru. No trecho equatoriano, um dos mais belos do percurso, Sérgio Amaral se impressiona com a exuberância de áreas como o Parque Nacional de Yasuni, já próximo à fronteira com o Peru. Mas se assusta com o gosto que a caça de animais silvestres desperta em muitos. Em Nueva Rocafuerte, ele encontra um senhor que exibe, orgulhoso, o que sobrou da onça que ele matou. “Gostei muito da foto porque, na hora que eu tirei, ele deu uma risada sinistra, pareciam dois animais, ele e a caveira da onça”, diz Serginho.
Também no rio Napo, embora em território peruano, o comandante informa discretamente que o grupo atravessará um trecho onde costumam haver assaltos. Os piratas não aparecem. O grupo segue por uma região pouquíssimo habitada, em que o médico a bordo da embarcação atende a moradores ribeirinhos em busca de remédios e assistência de saúde. Seguem-se dois dias navegando sob chuva permanente.
Iquitos é a parada mais marcante no Peru. Maior cidade da Amazônia peruana, com 450 mil habitantes, ali existem cerca de 300 mil motokars, triciclos adaptados (motocicletas com trolleys) que, para Amaral, dão ao lugar “uma cara oriental”. No Peru, como havia ocorrido no Equador, os técnicos presentes realizam medições e os estudantes constatam na prática a redução de volume de água dos rios amazônicos. Os níveis registrados, bastante inferiores aos de décadas passadas, apontam para uma mudança causada em boa parte pelo desmatamento.
Longe da Copa, outro encalhe
Rostos com traços indígenas recebem a expedição em Tabatinga (AM), a primeira cidade visitada no Brasil. Eles formam as tropas do Exército brasileiro na fronteira com Letícia, na Colômbia. “Letícia é uma cidade muito bonitinha”, destaca Amaral. O grupo vai a pé até lá para assistir a uma apresentação de cumbia, um dos mais populares ritmos colombianos e sul-americanos. A viagem segue em dois barcos, cedidos pelo governo amazonense.
Um deles encalha num banco de areia no terceiro dia de viagem. É rebocado por outro barco. A corda arrebenta, e o problema só é resolvido quando são utilizadas duas cordas. Enquanto isso, longe dali, o Brasil cumpre sua frustrante trajetória na Copa da Alemanha. “Não deu para acompanhar quase nada”, lembra o fotógrafo. “Vi a Argentina perder nos pênaltis. No dia em que o Brasil jogou com a França, não vimos. Estávamos no barco. Deu para assistir o jogo com Gana”.
Grandes problemas sanitários deixam mal vários integrantes da expedi&c