Está na Folha de S. Paulo desta quarta-feira, 26:
“Quarenta e três anos após ‘Jesus Cristo Superstar’ estrear nos EUA, o musical com letras de Tim Rice e música de Andrew Lloyd Webber ainda é capaz de cutucar instituições religiosas no Brasil. O calo apertou no pé de grupos católicos de São Paulo, onde nova montagem estreia no dia 14… A Associação Devotos de Fátima colocou na internet petição defendendo o cancelamento do financiamento da peça com recursos públicos. Com apoio da Associação Sagrado Coração de Jesus, o grupo espalhou sua mensagem de repúdio ao espetáculo e obteve adesão de blogs e páginas no Facebook”.
A internet potencializa o que há de melhor e o que há de pior na sociedade. Serve para nossos indignados marcarem seus legítimos protestos contra as maracutaias da Copa, mas também pode ser colocada a serviço da intolerância mais tacanha e patética dos fanáticos religiosos.
No besteirol que os mentalmente ancorados na Idade Média botaram pra circular em pleno século 21 lê-se que “não é lícito ao Estado laico violentar barbaramente a fé de milhões de pessoas, promovendo, com o dinheiro dos contribuintes, o evento blasfemo”.
Acontece que se trata apenas de uma peça teatral que atendeu às especificações da Lei Rouanet, sendo, portanto, autorizada a captar R$ 5,7 milhões. O Estado laico não emitiu nenhum juízo de valor sobre o espetáculo, limitando-se a verificar se ele se enquadrava uma legislação existente de incentivo à cultura. Os obscurantistas extemporâneos querem, simplesmente, introduzir uma nova forma de censura, voltada contra uma peça que passou incólume até mesmo pela censura ditatorial, em plena era Médici!
Como de hábito, o conservadorismo anda de braços dados com o reacionarismo, pois a petição zurra:
“Não creio que esse ministério teria coragem de promover 1% de algo que criticasse Maomé (ou mesmo Fidel Castro!…).”
PublicidadeSimplesmente não existe produtor teatral que ouse se tornar alvo do terrorismo islâmico e o mais provável é que uma peça criticando Fidel Castro naufragasse na bilheteria. Mas, se alguém assumisse tais riscos, decerto seria igualmente autorizado a captar recursos no mercado, o que não tem nada a ver com “promover” coisa nenhuma.
Para que os leitores conheçam melhor o pomo da discórdia, reproduzo abaixo a apresentação que fiz do filme Jesus Christ Superstar (que pode ser assistido, na íntegra e legendado, aqui), quando o disponibilizei no blogue. A abertura, aliás, cai como uma luva, no contexto desta nova investida dos patrulheiros da fé.
Um filme indigesto para os Felicianos da vida
Os religiosos conservadores consideram que a Bíblia, o Alcorão e outros textos antigos sejam a expressão fiel, eterna e imutável da palavra divina, não comportando questionamentos nem reflexões, apenas a aceitação incondicional.
Quem não abdica do nosso grande diferencial em relação aos animais, a capacidade de pensar, encara tais textos como produtos históricos. Neles existem ensinamentos válidos até hoje, mas também preceitos superados, característicos de sociedades extremamente menos complexas do que a nossa.
Há, contudo, os que fazem da fidelidade à ortodoxia uma bandeira, mesmo estando muito longe de por ela pautarem sua vida privada. Geralmente, assim procedem por ser esta a atitude mais conveniente para obterem sucesso em determinado nicho de mercado. São os Felicianos do templo.
A reverência obtusa marcava os intragáveis filmes religiosos da minha meninice, como O mártir do calvário, Vida, paixão e morte do Nosso Senhor Jesus Cristo e que tais. Eram projetados ano após ano na 6ª Feira Santa, sempre com as mesmíssimas cópias gastas, roídas até o osso. A lembrança que me ficou é a de feriados estragados pela falta da minha diversão favorita, a matinê dos saudosos cines Aliança e Patriarca.
Até 1973, eu só travara contato com uma visão alternativa, a de Pier Paolo Pasolini em “O evangelho segundo São Mateus” (1964). Enfatiza os aspectos subversivos da pregação de Cristo, mas era um filme árido demais para me cativar, deliberadamente pobre e sombrio, com pouca ação e uma overdose de diálogos, parecendo teatro filmado.
Veio então o musical Jesus Christ Superstar, e foi uma grata surpresa. Adorei. Tinha ótimas músicas, coreografias belíssimas, fotografia impecável, força dramática e, acima de tudo… vida inteligente. Tratava-se da adaptação cinematográfica da melhor de todas as óperas-rock.
Andrew Lloyd Weber mandou bem nas músicas, mas o maior mérito foi do letrista Tim Rice, que deu uma abordagem crítica aos últimos dias de Cristo. Mostrou os grandes personagens do drama bíblico como prisioneiros da História, relutantes em cumprir sua sina mas impotentes para dela escapar.
Assim, Jesus não quer o cálice do martírio mas se submete à vontade divina, pedindo, contudo, a Deus que faça tudo acontecer rapidamente, antes que ele mude de ideia.
Judas não quer trair, mas teme que Cristo tenha perdido o controle da multidão e dê aos romanos motivo para promoverem um banho de sangue.
Pilatos não vê crime a ser punido, mas recua quando o povaréu lhe urra que acima dele está César e a tibieza poderá acarretar sua desgraça.
O sumo-sacerdote Caifás teme o caos que, na sua opinião, advirá se a autoridade religiosa for abalada.
Só Herodes, mostrado como um frívolo hedonista, não age a contragosto e optando pelo que seria um mal menor.
Foi um achado a solução encontrada pelo brilhante cineasta Norman Jewison (o diretor de “A mesa do diabo”, “No calor da noite” e “Hurricane”): encenar seu drama nas ruínas e desertos de Israel. Estava bem no espírito da era hippie, tendo tudo a ver.
E, num elenco de desconhecidos que não destoaram, o destaque absoluto é o enérgico e carismático Carl Anderson como Judas. Aliás, Jewison foi indagado sobre o motivo da escolha de um negro para papel tão melindroso. Respondeu que se tratava do personagem com maiores exigências dramáticas, daí ter optado pelo melhor ator de que dispunha, sem dar a mínima para sua cor.
* Celso Lungaretti é jornalista, escritor e ex-preso político. Mantém o blog http://naufrago-da-utopia.blogspot.com.br/.