Deveria valer para qualquer cidadão, em qualquer circunstância: ninguém pode alegar desconhecimento da lei para escapar de punição. O cidadão normal que já teve que fazer uma declaração retificadora de imposto de renda para corrigir alguma informação equivocada sabe bem disso na prática. Não importa que o erro tenha sido da empresa, que informou seus rendimentos de forma errada. Errou, está devendo imposto de renda, tem de pagar. Deveria valer para qualquer cidadão. Deveria… Há um grupo de 81 senhores privilegiados que, a despeito de serem exatamente aqueles que escrevem as leis, se consideram acima delas. São os distintos, engravatados, enfatiotados, que se tratam um ao outro como excelências. São os senhores senadores.
Como legisladores que são, os senhores senadores deveriam ser os primeiros a saber que não podem alegar desconhecimento da lei para não serem punidos. Pois bem: eles alegam que foram erradamente orientados pela direção do Senado e, por isso, não recolheram imposto de renda sobre o 14º e o 15º salários que receberam. Ficaram devendo o imposto, e a Receita Federal fez com eles o que faz com qualquer contribuinte devedor: notificou-os. A partir daí, começaram as diferenças para os cidadãos comuns. Com um poder que nenhum cidadão comum teria, os senadores reclamaram. A Mesa Diretora do Senado reconheceu que o fato era consequência de um erro da administração, e, para espanto geral, resolveu pagar o imposto devido pelos senadores!
O Senado resolveu dar de presente aos senadores mais de R$ 10 milhões! Sim, de presente! Porque, efetivamente, são eles, e não o Senado, que devem tal dinheiro para a Receita. Assim, ainda que não tenham mais o dinheiro, essa quantia indevida eles receberam. E não vão devolver, por decisão do Senado.
Ninguém tira R$ 10 milhões do bolso e dá de presente. Situações assim só acontecem porque o dinheiro dado é público. É a generosidade com o chapéu alheio, que é um dos piores aspectos da elite política patrimonialista que nós temos. É a mesma generosidade com o chapéu alheio que faz com que a Câmara pague sem reclamar R$ 44 mil em média para a alta cúpula do seu funcionalismo, como mostrou ontem o Congresso em Foco . Esses servidores receberam quase o dobro do valor do teto constitucional do funcionalismo, e a Câmara briga na Justiça para ter o direito de pagar tal valor a eles. É generosa com tais servidores porque o dinheiro não sai do bolso do presidente da Câmara, Marco Maia (PT-RS). Mas porque o dinheiro é público. Para a elite política brasileira, dinheiro público – que, na verdade, é dinheiro de todo mundo – não é dinheiro de ninguém.
Que tal, então, em vez de pagar injustificados supersalários ou o imposto de renda devido dos senadores, construir escolas, postos de saúde? Gastemos com generosidade o dinheiro público. Mas com o que for vantajoso para o público.
Numa República, senadores até podem chamar uns aos outros de “excelências”. Mas, numa República, ninguém deveria se julgar melhor do que ninguém, no que diz respeito a direitos, a deveres e ao respeito à lei. Mas a elite política resiste duramente a aceitar tal ideia. Desde o início da formação do Brasil, herdou-se da antiga monarquia portuguesa a ideia de que tal elite é especial. São os “fidalgos”. O termo significa, literalmente, “filho de algo”, o que traz implícita a ideia de que aqueles que não são fidalgos não são ninguém.
Fidalgos não têm de se submeter às chateações comezinhas destinadas à “gentinha”. Não entram em fila. Têm preferência nos aeroportos. Andam com motorista. Não têm de dar satisfação sobre seus salários. E, pelo que entende o Senado, nem imposto precisam pagar.
Felizmente, a democracia, ainda que com lentidão, trabalha contra os fidalgos. Seja nos julgamentos em curso no Supremo. Seja na decisão de publicar nominalmente a lista de salários do funcionalismo público. Ou em vários outros avanços que pouco a pouco vão acontecendo. Os senadores terão de entender que, por mais que se tratem como “excelências”, na República brasileira, como deve ser, eles não são mais “excelentes” do que eu, ou você.