Num debate na terça-feira (1) na rádio CBN sobre o assédio judicial que o Sindicato dos Servidores do Poder Legislativo (Sindilegis) resolveu imprimir ao Congresso em Foco, o jornalista Carlos Heitor Cony lembrou um dado importante, que foi também reforçado aqui em comentários do leitor Alex Custódio.
(Um parágrafo de parênteses para lembrar: dentro de uma série de reportagens sobre os salários que são pagos nos três poderes da República acima do teto constitucional, os chamados supersalários, o Congresso em Foco publicou a relação dos 464 servidores do Senado que, segundo auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU), tinham vencimentos em 2009 que ultrapassavam os salários dos ministros do Supremo Tribunal Federal, o que é vedado pela Constituição. Para o Sindilegis, ao publicar os nomes desses servidores e seus salários, o site violou a privacidade deles. Daí, o sindicato orientou-os a entrar com ações individuais contra o Congresso em Foco. Quarenta e três detentores de supersalários aceitaram a sugestão.)
O que Carlos Heitor Cony e Alex Custódio bem disseram é que não cabe falar em violação de privacidade porque os vencimentos de um servidor público são públicos. Cada vez que um servidor público é nomeado ou passa a exercer alguma função que implica um aumento no seu salário ou a incorporação de alguma gratificação, isso é publicado no Diário Oficial (ou no diário relacionado com o poder no qual ele trabalha). A partir dessa publicação, quem conhece os códigos que identificam cada função e cada gratificação consegue saber exatamente quanto ganha esse servidor. Um exemplo: se sai publicado no Diário da Câmara que determinada pessoa foi contratada na função CNE 07, sabe-se que o salário dessa pessoa será de R$ 12 mil.
A única coisa que os auditores do TCU fizeram – e que, em seguida, o Congresso em Foco publicou – foi reunir essas informações. Às quais qualquer um poderia chegar. Claro, iria se entregar a um trabalho hercúleo. Mas poderia chegar.
O dado que a mim parece mais impressionante de toda essa polêmica que se gerou a partir da publicação dos nomes desses servidores que recebem supersalários é a falta de noção dessas pessoas e do sindicato que as representa sobre o que significa “público”. Se soubessem, provavelmente em nada reagiriam.
Recorro ao dicionário Houaiss e ao seu verbete sobre o que significa “público”: “1 relativo ou pertencente a um povo, a uma coletividade 2 relativo ou pertencente ao governo de um país, estado, cidade, etc (…) 3 que pertence a todos, comum (…) 4 que é aberto a quaisquer pessoas (…) 5 sem caráter secreto; manifesto, transparente (debate) 6 universalmente conhecido”. Seguem outras atribuições, mas fiquemos apenas nessas.
O que se observa é que todos os sentidos para a palavra público estão ligadas ao domínio, à satisfação, ao conhecimento de todos. Com exceção de um deles, o segundo. O que parece ocorrer com alguma freqüência no funcionalismo público é se enxergar a atividade apenas a partir dessa ótica: gente que tem como patrão os governos e seus poderes. Quem enfrentou uma fila da previdência ou de qualquer outro birô de qualquer repartição do Executivo, do Legislativo ou do Judiciário entende o que estou dizendo.
O mau servidor público traz dentro de si o desconhecimento de que sua função é servir ao público. De que seu patrão não é o governo, mas o público. Porque o público é que é o patrão do governo numa democracia. É o público que contrata – quando elege. E é o público que demite – quando deixa de eleger. E é o público que paga cada um dos salários do funcionalismo público. Porque cada um desses supersalários é pago com dinheiro do orçamento da União. E o orçamento da União nada mais é que o resultado do recolhimento dos impostos federais. Assim, nada que possa envolver essa relação entre o público e o funcionalismo público pode ser privada.
O que acontece é que se estabeleceu uma valoração para o funcionalismo público que em nada prestigia esse caráter público da atividade. Boa parte das pessoas faz concurso público em busca de obter estabilidade no emprego, tranquilidade e bons salários. A hipótese de realizar algum tipo de tarefa que realmente tenha o público como alvo, como objetivo, infelizmente passa longe da cabeça de uma boa parte dos servidores públicos. Não de todos, é bom que se diga.
Durante o tempo em que o Congresso em Foco vem publicando matérias sobre supersalários, alguns servidores reagiram com comentários em que diziam que as reportagens seriam fruto da “inveja” dos autores por não terem esse tal emprego que garante estabilidade e bons vencimentos. Nada mais tolo que esse argumento. O jornalismo é uma escolha, uma opção, dos que aqui trabalham, respeitados e reconhecidos profissionais, que somam diversos prêmios de jornalismo, em outros empregos e também neste premiado e reconhecido site.
No meu caso específico – e acredito que também no caso dos meus colegas –, há, na verdade, uma consciência plena do exercício de um serviço público. Sem a estabilidade e a tranquilidade do serviço público propriamente dito, por escolha, por opção. Mas levar às pessoas as informações que permitirão a elas compreender o que se passa à sua volta, para que, como cidadãos, posicionem-se, é, sem dúvida alguma, um serviço público da maior relevância. Se, por intermédio das minhas informações, houve pelo menos um leitor que deixou de escolher um mau candidato numa eleição, que saiu às ruas em protesto contra algum desmando ou que, pelo menos, tenha feito um comentário indignado sobre algo no twitter, facebook ou mesmo na mesa de um bar, terão valido estes 25 anos de profissão. Tomara que sejam cada vez mais os servidores públicos que também pensam assim acerca de seus trabalhos.