Da equipe do Congresso em Foco
Sim, o mensalão – definido como "esquema ilegal de financiamento, voltado ao aliciamento de parlamentares e partidos para a base do governo no Congresso" – existiu. Não, não há provas de que Lula dele tenha participado. Opa, essa foi quase. O PT sai enlameado, mas o senador Eduardo Azeredo (MG), que até recentemente era o presidente nacional do PSDB, também fica mal na foto. Ou seja: quase os tucanos recebem, pronto e de graça, um libelo que poderia ser distribuído como peça de campanha eleitoral.
É nessa marcha, dando uma no cravo e outra na ferradura, que o deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR), ao apresentar ontem o relatório final da CPI dos Correios, apresentou um documento em vários aspectos surpreendente. Quase sem apresentar fatos novos, foi uma grande novidade em si mesmo. Ao poupar Lula e deixar de citar o seu filho, Fábio Luiz Lula da Silva, beneficiário de milionário repasse da Telemar, o texto irritou os oposicionistas e foi recebido com alívo por alguns petistas.
Foi, enfim, quase uma unanimidade ao contrário, isto é, uma fonte de descontentamento para gregos e troianos. Isso não se deu porque, indiscutivelmente, Serraglio construiu uma peça contundente contra o governo. Distribuiu acusações contra ministros, ex-ministros e deputados governistas, e transformou em pó os esforços feitos nos últimos meses pelo Palácio do Planalto e pelo PT para atribuir os repasses irregulares recebidos por parlamentares a transferências eleitorais "não contabilizadas" – o famoso caixa dois.
É certo que o relator se empenhou para finalizar o seu trabalho com fundamentação técnica e jurídica, mas também aí ele ficou no quase. O resultado é um volume marcadamente político. Salta à vista o seu esforço para apresentar algo passível de aprovação, num ambiente em que as forças da oposição e do governo enfrentam-se em clima de guerra. Assim, o relatório do quase ora mostrou-se baseado na técnica, ora inspirado pelo desejo de conciliar grupos políticos cuja rivalidade é hoje extremamente aguçada pela iminente disputa eleitoral.
O relatório quase foi festejado por congressistas da oposição, mas também provocou irados protestos de tucanos solidários a Azeredo. Quase tirou do sério alguns governistas, mas foi brindado com elogios de congressistas do PT. No final das contas, quase todos tinham alguma restrição a fazer ao relatório de Serraglio. Ninguém, no entanto, pôde desqualificá-lo inteiramente.
A batalha da aprovação
As primeiras reações ao relatório final sinalizam, em primeiro lugar, que sua votação será uma batalha duríssima entre os pólos em conflito. Mas Serraglio já pode contabilizar uma vitória: o governo desistiu de apresentar um relatório paralelo, que também enfrentava restrições regimentais, e vai optar pela apresentação de emendas supressivas ou aditivas. Ele tem pela frente, porém, um problema. A oposição deve fazer o mesmo, seja para tirar Azeredo, seja para incluir o nome do filho do presidente.
Uma coisa é certa: para ser aprovado, o documento apresentado ontem pelo relator terá de passar por várias mudanças.
O relatório do quase deixou furioso o deputado Jorge Bittar (PT-RJ). "É um relatório Frankenstein. Não há base para pedir o indiciamento de Dirceu, Gushiken e Genoino", criticou, referindo-se aos ex-ministros José Dirceu e Luiz Gushiken e ao ex-presidente nacional do PT, José Genoino. "O relatório falhou em vários aspectos jurídicos, o que não pega bem para um relatório feito por um deputado que é advogado", apedrejou a líder do PT no Senado, Ideli Salvatti (PT-SC).
Já o senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT) fulminou: "O relatório é uma palhaçada. Ele indicia Eduardo Azeredo por crime eleitoral que já prescreveu. É para dar uma satisfação ao PT. Não tem nenhum valor. É um tiro na água".
Por outro lado, parlamentares conhecidos por sua independência – como o senador Eduardo Suplicy (PT-SP) e a deputada Denise Frossard (PPS-RJ) – parabenizaram Serraglio pelo trabalho.
Ao longo de 1.839 páginas, Serraglio descreve em detalhes as conclusões das 165 reuniões realizadas, que culminaram em 134 sugestões de indiciamento ao Ministério Público (sem contar os pedidos de investigação de empresas, corretoras e instituições). Sua linguagem é quase clara. Às vezes, torna-se bastante empolada, incluindo termos como cúspide (ponta), lobrigar (entrever, vislumbrar) ou sabença (sabedoria). Seu conteúdo, no entanto, é sempre significativo.
Omissões importantes
Serraglio indicou como fontes do chamado valerioduto os recursos da Visanet, empresa operadora de cartões de crédito da qual o Banco do Brasil detém quase um terço das ações. Segundo ele, essa foi a principal fonte pública dos recursos movimentados pelo empresário Marcos Valério Fernandes de Souza. Também citou três empresas privadas, a Brasil Telecom, o grupo Usiminas e a Cosipa, por terem feito repasses para as empresas de Valério sem a devida comprovação de que elas lhes prestaram serviços.
Detalhe fundamental: embora tenha citado as três empresas privadas, Serraglio, curiosamente, não sugeriu o indiciamento de nenhum de seus sócios ou administradores. Também não avançou em relação a outros possíveis financiadores públicos e privados do valerioduto (leia mais). Mais uma vez, o relator ficou no quase.
Especialmente flagrante, no relatório final, foi o fato de ter sido poupado o empresário Daniel Dantas, dono do Banco Opportunity e acusado de repassar expressiva soma de recursos para as agências de Valério por meio de empresas que à época controlava (Brasil Telecom, Telemig Celular e Amazônia Celular). Em contrapartida, o texto de Serraglio encampa a versão de Dantas sobre o acordo firmado entre o Citibank e os fundos de pensão. O entendimento possibilitou o afastamento do Opportunity da gestão das companhias.
Apesar de citadas no relatório, duas linhas de investigação levantadas pelo Congresso em Foco ficaram em aberto: o expressivo aumento dos repasses de Valério à BBTur (leia mais) e as irregularidades constatadas em auditoria do Tribunal de Contas da União nos contratos de empresas de Valério com a Eletronorte (leia mais).
A CPI já marcou uma reunião para a próxima terça-feira, dia 4, com o objetivo de discutir e votar o relatório. Difícil prever o desfecho desse novo embate entre oposição e governo. Até porque o relator diz que não pretende fazer concessões em seu texto, a menos que os integrantes da CPI levantem fatos para justificar mudanças. Ele sugere que prefere ver seu relatório derrubado em uma votação do que deformá-lo: "Aceitarei se tiver opções. Caso contrário, não vou ceder, prefiro perder".
Após ouvir a maioria dos 32 integrantes da CPI, o Congresso em Foco elencou os principais pontos de atrito entre governo e a oposição na peça apresentada por Serraglio. Saibam quais são eles:
1) Mensalão existiu e não é caixa dois
O relatório usa quatro argumentos para demonstrar a existência do mensalão: 1) o início dos repasses do valerioduto ocorreu em 2003, ano em que "não houve eleições"; 2) se fosse caixa dois para pagar dívidas de campanha, os destinatários dos recursos teriam como comprovar, por notas fiscais, os gastos – o que não fizeram; 3) o fato de em algumas ocasiões os recursos do valerioduto terem servido para pagar dívidas de caixa dois, como no caso de Duda Mendonça, não afasta a existência do mensalão; 4) diversos depoimentos deixaram claro que o Executivo obteve a fidelidade de parlamentares à custa de repasses financeiros ilegais.
Para o relator-adjunto da CPI dos Correios, Maurício Rands (PT-PE), contudo, não há como provar que os pagamentos identificados estavam relacionados com a votação em matérias legislativas de interesse do governo e não – como alegam os seus beneficiários – com financiamentos eleitorais de forças partidárias que haviam se aliado. "Ir além disso é querer politizar a questão", acredita Rands.
Outro aspecto levantado pelos governistas é que o relatório teria uma contradição. De um lado, aponta ex-membros do governo – José Dirceu, por exemplo – como corruptores, sujeitos portanto a responderem ações penais por corrupção ativa. Do outro, não qualifica os parlamentares que receberam o dinheiro como responsáveis por atos de corrupção passiva – isto é, como corruptos.
A oposição discorda. "O relatório é corajoso e confirma a existência do mensalão. Mostra que no governo Lula houve um esquema para roubar e para comprar votos", manifestou-se Onyx Lorenzoni (PFL-RS), um dos sub-relatores da CPI.
2) A participação de Lula
Depois de muita polêmica, o relator decidiu citar o presidente Lula em seu texto final. Ele argumentou que Lula fora avisado sobre o mensalão pelo ex-deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) antes de estourar a crise política. "Contudo, não há qualquer fato que evidencie haver se omitido (em tomar providências)", escreveu Serraglio.
Na ocasião, o presidente acionou o então ministro da Articulação Política, Aldo Rebelo (PCdoB-SP). "O presidente Lula ouviu e pediu a mim e ao líder Chinaglia que investigássemos a denúncia", diz Aldo, em depoimento ao Conselho de Ética, em setembro do ano passado.
Maurício Rands e o sub-relator de contratos da CPI, José Eduardo Cardozo (PT-SP), consideraram acertada a citação de Lula feita por Serraglio. "A citação do presidente Lula foi sóbria", pensa Rands. "O relator se ateve aos fatos", disse Cardozo.
Já a líder do PT no Senado, Ideli Salvatti (SC), discorda de seus colegas petistas e afirma que a base aliada não vai sequer votar o relatório se a parte em que Lula é citado for mantida. "Não há a menor chance de votar como está", afirmou ao enfatizar que falta embasamento jurídico para responsabilizar o presidente no caso.
A oposição corre por outra via. Não apenas concorda com a citação de Lula no relatório da CPI como pensa em tornar mais delicada a situação do presidente. "Não há como deixar de apontá-lo como o responsável", declarou o senador Álvaro Dias (PSDB-PR), prometendo estudar uma maneira de tipificar juridicamente o envolvimento do presidente. "É um caso de crime de responsabilidade, pois o presidente não tomou nenhuma atitude, mesmo sabendo do fato", arremata o deputado tucano Antonio Carlos Pannunzio (PSDB-SP).
"Isso é rigorosamente inaceitável perante as provas", rebate Cardozo. "Não adianta fazer um relatório quente no discurso, mas que não tem desdobramento jurídico", sustenta o deputado Carlos Abicalil (PT-MT), para quem não há nenhuma base factual ou legal para a abertura de um processo contra Lula.
3) O envolvimento de Azeredo com o valerioduto
O pedido de indiciamento do senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG) soou como uma tentativa de acalmar a base governista. O relatório sugeriu que o parlamentar fosse indiciado por ter usado caixa dois em 1998. O problema é que, se o crime foi apenas eleitoral, já está prescrito.
Enquanto senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT) indignava-se com a sugestão de indiciamento de seu colega de bancada, a senadora Ideli Salvatti também criticava a parte do relatório que falava de Azeredo.
Ela reclama que, no parágrafo sobre o mensalão, Serraglio grafou a palavra "empréstimos", com aspas, para dar a entender que as transações feitas por Valério foram de fachada. No trecho sobre Azeredo, a palavra foi escrita sem aspas porque, na visão do relator, a dívida com o Banco Rural teria sido quitada.
"Quitada entre aspas, porque não teve pagamento", destacou a petista. "São dois pesos e duas medidas. Se indicia os do mensalão, fala de corrupção ativa, crime de falsidade ideológica, lavagem de dinheiro, por que não vale o mesmo para o Azeredo?", questiona.
"O relatório não liga o esquema de caixa dois montado em Minas para a campanha de Eduardo Azeredo em 98 com o valerioduto", acrescenta Maurício Rands.
Em nota, Azeredo se disse indignado com o pedido de indiciamento e afirmou que o relator agiu por motivos "claramente políticos". Ele ressaltou não ter tido participação no esquema e lembrou que o Conselho de Ética do Senado arquivou investigação sobre o caso por falta de provas.
O relatório sugere ainda o indiciamento, também por crime eleitoral, de Cláudio Mourão, tesoureiro da campanha do senador tucano, e de Clésio Andrade, candidato a vice na chapa de Azeredo e atual vice-governador mineiro. Em depoimento à CPI, o senador responsabilizou exclusivamente Mourão por ter recebido recursos de Marcos Valério.
4) O filho de Lula
O relator não cita nominalmente Fábio Luiz Lula da Silva, filho do presidente Lula. Ele é sócio da Gamecorp, empresa de jogos eletrônicos que recebeu no total R$ 10 milhões da Telemar. O texto ressalta que os repasses são suspeitos, mas não menciona o filho de Lula em nenhuma linha.
O relator disse que não tinha indícios de que Fábio tenha cometido qualquer ilegalidade. Citá-lo, justificou, seria "pura pirotecnia". A oposição promete brigar para incluir o nome do filho de Lula no relatório final, anunciou o deputado Antonio Carlos Magalhães Neto (PFL-BA).
5) O indiciamento dos 19 beneficiários do valerioduto
O deputado Osmar Serraglio relacionou os nomes de 19 deputados e ex-deputados beneficiários do valerioduto. São os mesmos nomes encaminhados em setembro pela CPI dos Correios e pela extinta CPI do Mensalão ao Conselho de Ética da Câmara, para abertura de processo por quebra de decoro parlamentar.
"Esta relatoria não teve como avaliar a documentação que sustentou as defesas posteriores àquele encaminhamento", diz o texto. "Assim, podem ter incorrido em crime eleitoral e de sonegação fiscal".
Diante das críticas de que teria aliviado na tinta em relação aos 19 deputados, Serraglio reagiu: "Reconheço que não fui claro e vou alterar o texto se for necessário. Quero que o Ministério Público apure todas as operações do mensalão".
6) Os pedidos de indiciamento de Dirceu, Genoino, Gushiken e Delúbio
O texto de Serraglio sugere ao Ministério Público o indiciamento, por corrupção ativa, do ex-presidente do PT José Genoino, do ex-tesoureiro do partido Delúbio Soares, do ex-ministro-chefe da Casa Civil José Dirceu e do ex-ministro da Secretaria de Comunicação do governo Luiz Gushiken. Segundo o texto, todos foram responsáveis por articular a distribuição de mesadas a parlamentares em troca de apoio ao Planalto.
O relatório afirma que Genoino, "como dirigente máximo da legenda, foi um dos idealizadores do sistema operado pelo colega Delúbio Soares", da mesma forma que Dirceu, "idealizador do esquema de corrupção".
Além de corrupção ativa, o texto sugere o indiciamento de Delúbio e Genoino por falsidade ideológica, lavagem de dinheiro e crime eleitoral. Quanto a Gushiken, o relatório pede o enquadramento também por tráfico de influência.
O petista José Eduardo Cardozo criticou o fato de Serraglio não ter enquadrado os beneficiários do mensalão por corrupção passiva. "Se tem o corruptor ativo, tem o passivo", declarou o parlamentar, referindo-se – sem citar nomes – aos parlamentares que receberam os recursos.
"Isso é puro sofisma", define o senador Demóstenes Torres (PFL-GO), também da CPI, sobre a avaliação de Cardozo. Segundo ele, o eventual indiciamento dos supostos corruptores não está condicionado à abertura de processos contra os deputados mensaleiros por crime de corrupção ativa.
"O indiciamento do Gushiken não tem base legal", afirma Carlos Abicalil (PT-MT), um dos sub-relatores da CPI. Indignado, o ex-ministro divulgou nota, ontem mesmo, afirmando que Serraglio rendeu-se "à lógica do espetáculo, sem olhar para os fatos"; apoiou-se na idéia de que "simples suspeições dispensam os atos comprobatórios"; e fez "um julgamento inteiramente injusto, despropositado e sem fundamentação jurídica" de sua conduta.
O advogado de José Dirceu, José Luiz Oliveira Lima, classificou o relatório de "peça de ficção", que seria "fruto da criatividade intelectual" de Serraglio.
7) Visanet, o financiador público?
O texto final da CPI apontou a operadora de cartões Visanet como a principal financiadora pública do valerioduto. A empresa, que tem 31% de suas ações controladas pelo Banco do Brasil, teria desviado R$ 20 milhões para o esquema ilegal operado por Marcos Valério. Para a base governista, porém, não há como dizer que os recursos saíram dos cofres públicos, já que a Visanet é uma empresa privada.
"Estou baseando minha tese nisso e pretendo contestar o relatório. A Visanet é uma empresa de capital privado", ressalta o petista Carlos Abicalil.
O relatório, no entanto, lembra que o Banco do Brasil é o único responsável pelas transações feitas pela Visanet para assuntos que dizem respeito ao banco. "A Visanet esclarece que cabe ao Banco do Brasil a indicação, escolha e contratação dos seus fornecedores, sendo responsável exclusivo pelas negociações. Se atua desastrosamente, não se transfere isso aos demais cotistas", diz o relatório.
A operação Visanet – espécie de engenharia financeira para alimentar o valerioduto – foi revelada pela CPI em novembro do ano passado. A comissão apurou que a empresa pagou R$ 20 milhões à DNA Propaganda, de Valério, por serviços não prestados. O dinheiro foi depositado nos bancos Rural e BMG, retirado sob a forma de empréstimos e repassado ao PT.
8) O destino dos novos mensaleiros
O cruzamento dos dados bancários, telefônicos e fiscais das empresas de Marcos Valério com a lista de funcionários de gabinetes da Câmara pode revelar cerca de 50 novos nomes de deputados envolvidos. Mas, diante da fragilidade em saber se eles se beneficiaram com recursos do valerioduto, a CPI ainda não sabe o que fazer relação a essas frentes de investigação.
A tendência é que a lista com os novos nomes seja encaminhada, em caráter sigiloso, para o Ministério Público investigar.