O maremoto midiático causado pela incompreensão do presidente da República acerca da missão do IBGE continua provocando marolas de desconforto.
Os jornais do último domingo (30/01) noticiam que até mesmo o presidente do PT, José Genoino, criticou portaria recente do Ministério do Planejamento impondo censura prévia à divulgação de pesquisas elaboradas pelo instituto, bem como punição para funcionários que violem esse novo regimento interno da mordaça com vazamentos de dados para a imprensa.
O paciente leitor e a santa leitora lembrarão que, no final do ano passado, Lula teve um ataque de destempero contra os resultados de uma pesquisa nacional de orçamentos familiares. Com base em amostra de 48 mil famílias, minuciosamente acompanhadas em seus hábitos e despesas alimentares por entrevistadores do IBGE, o estudo revelou que a fome crônica, cujo principal indicador é deficiência de peso em confronto com outras variáveis biométricas, assola 4% da amostra. Enquanto isso, significativos 40,6% dos entrevistados apresentam excesso de peso, sendo 11% classificados mesmo como obesos.
Convenhamos: não há marketing de Fome Zero que resista a esses dados. Irritado com tamanha desfeita ao seu programa social de estimação, Lula danou a desqualificar a pesquisa e, por tabela, o órgão responsável por ela e seu corpo técnico, sentenciando, do alto de sua experiência pessoal de antigo retirante nordestino, que pobre tem vergonha de dizer que passa fome.
Infelizmente, na sua santa ira sociológica, Lula equivocou-se em um ponto crucial, confundindo estudo de observação participante com simples pesquisa de opinião da modalidade praticada por institutos como o Ibope e o Vox Populi, para dar só dois exemplos. No primeiro caso, os técnicos vão além das declarações do entrevistado, observando suas práticas efetivas: o que ele faz, não meramente o que ele diz/pensa/gostaria.
Seria bom se o historiador da Unicamp Marco Aurélio Garcia, assessor especial para relações internacionais e intelectual de plantão no Palácio do Planalto, evocasse para seu chefe o trecho mais famoso da República, de Platão, a alegoria da caverna. Nela, o sábio grego traça a linha divisória entre doxa (opinião) e episteme (conhecimento positivo); ou seja, desejo versus realidade; ideologia marqueteira, de um lado, e verdade pura e simples, de outro.
Em sua narrativa, que me traz à recordação aquela fábula dos cegos que tateiam inutilmente para definir um elefante (é um paredão? uma corda? uma cobra? dois enormes leques de abano? um gigantesco par de chifres?), Platão, falando por intermédio de seu mestre Sócrates (470/399 a.C.), compara a situação cotidiana das pessoas à dos prisioneiros em um grande buraco, amarrados e forçados por correntes em volta do pescoço a olhar apenas para uma parede interna da caverna, enquanto lá fora o sol ilumina seres livres que passam incessantemente e projetam suas sombras na tal parede. Não admira que, no entender dos cativos, reduzidos àquela triste condição desde a infância, as sombras distorcidas sejam a própria realidade.
Mas, continua Sócrates/Platão, graças a esforços inconformados, um ou outro prisioneiro rompe suas corrente e escala o abismo até a superfície. Lá, em face da poderosa fonte de luz, sua primeira sensação é de ofuscamento, de cegueira. Aos poucos, porém, o fugitivo se vai acostumando a ver pessoas, animais e objetos nos seus reais contornos e dimensões. Entusiasmado com a descoberta, ele volta ao buraco com a nobre intenção de emancipar seus artigos companheiros de infortúnio. Porém, o mensageiro da boa nova é recebido com descrença, frieza, até hostilidade, quem sabe com aquele mesmo despeito exibido pela assembléia de cidadãos atenienses que condenou Sócrates à morte por julgá-lo um corruptor da juventude com suas idéias heterodoxas.
O mito platônico, repito, ensina a distinguir a essência da aparência, a causa do efeito, o fato do valor, a evidência de campo da pesquisa de opinião. Ensina, também, que a busca do conhecimento nos assuntos humanos é trabalhosa, cansativa, no limite, temerária, enfim, uma decisão corajosa que rechaça qualquer concessão à indolência mental.
Pensando bem, talvez eu esteja a querer demais do professor Garcia, que percorreu uma cintilante trajetória acadêmica como dublê de historiador e apologista dos movimentos operários e partidos comunistas no Brasil e no mundo. Não me espantaria se soubesse que ele considera Platão um senhor de escravos grego, elitista, misógino e reacionário. Afinal, esse é o julgamento corrente nos meios intelectuais de esquerda.
Se for assim, que ele, ao menos, em seus conselhos ao presidente lembre-se da frase desafiadora que seu ídolo Karl Marx, no século XIX, lançou a um companheiro alfaiate da época da criação da Primeira Internacional, o qual chafurdava em romântico obreirismo antiintelectualista. “A ignorância”, explodiu Marx com um murro na mesa de reunião, “nunca serviu a ninguém!” Ou será que ainda serve?
(*) Professor de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) e analista da Kramer & Ornelas – Consultoria.