Foi tão rápido, sobretudo o último mês. Dias agônicos. Sofremos de forma absurda com sua dor intransponível, espécie de maldição intermitente, eternamente à espreita, salvo umas tréguas pra lá de fajutas, carregadas, mais com jeito de calmaria, e não dava outra: as crises desabavam ainda piores. O fato é que este ano, já a partir de março, voltei a morar com ela. Por mim (por razões que não vêm ao caso), mas, no fundo, muito mais por ela, que se apagava pouco a pouco, um pouco mais a cada mês, cada semana, cada entardecer. Mas na época, naturalmente, não me tocava. Ainda. Normal. Vivendo numa ilusão persistentemente bocó que ela tivesse jeito, sabem. Enquanto as coisas aparentam uma certa normalidade, simplesmente é melhor NÃO VER, acreditem. Inconscientemente, ordenava a mim mesma não sofrer por antecipação.
Abençoado saber secreto.
Num outro plano, contudo, tinha plena consciência de seus 86 anos e todo aquele elenco de males, tipo uma osteoporose onipresente a roer-lhe os ossos, o que leva fatalmente a uma espécie de dopping ao longo de décadas, composto por analgésicos, antiinflamatórios, infiltrações locais do tipo futebol americano (sua fixação no amor materno, tornou-a veterana da dor, da qual aliás fugiu a vida inteira como o diabo da cruz: não há obsessões gratuitas, só que minha mãe não sabia disso. Não curtia Santa Teresa D’Ávila).
Sem contar, cinco anos atrás, a instauração do chamado”delírio senil” – o que determinou o uso duma Olanzapina básica, 10 mg. (vulgo Ziprexa) – donde o SUS e a entrada no programa da medicação de alto custo (o lance deve andar na faixa dos mil reais a caixa com vinte) – sem esquecer os soporíferos (minha mãe era completamente junkie neste departamento há uns vinte séculos), tipo Diempax, Seconal, Diazepan, o caralho, e nesta altura do campeonato (e da overdose secular dos retro mencionados), as funções digestivas, intestinais, hepáticas começam a ir para o diabo – então ela – que comia pouco (sempre foi uma mulher pequenina), não bebia nem fumava – resignava-se, limitando-se a diminuir o pique, aceitando (meio puta) restringir-se cada dia mais (no more viagens, no more bailes da saudade, no more compras – curtia tanto ir à Droga São Paulo como se fosse ao Shopping Higienópolis – no more daqui na esquina, na mesma proporção do aumento de horas em frente a tevê à cabo), embora esteja lá no I Ching: “Toda limitação demasiado amarga acarreta uma amarga retribuição. A perseverança traz infortúnio. O caminho termina.” (Hexagrama 60 – Chieh).
Não deu outra. Não podia dar. Mas o amor simplesmente ignora verbos no condicional.
Quando o meu pai morreu, me senti remotamente abandonada, que havia perdido uma presença forte, que me defendia (ainda que seja tudo meio mentira, meio ficção, ele SIGNIFICAVA isso, sempre significaria. Enquanto vivo). Mas minha mãe não. Dela suguei tudo e joguei o bagaço fora. E ela deixou. Morreu no bagaço, relutando nos deixar até o último segundo. No bagaço e perguntando se comi, se não esqueci o guarda-chuva, se tomei a porra do remédio: vai embora, mãe, se manda, chô.
Então oscilo entre as compressas do “foi melhor assim” e a ferida, “puta que o pariu, cadê você, mãe, nunca mais, é isso? então é isso?” – do alívio ao desespero, do alívio ao desespero. De repente, me fisgo pensando que amanhã é preciso levá-la ao ortopedista, à terapeuta logo cedo na sexta e já estou preparando a banana amassada com aveia e então a coisa volta num tapa: o vazio, o buraco de ar, aquelas mãos pequeninas, enrugadas, sardentas, que me acariciavam com infinitos de ternura, como a coisa mais preciosa da face da Terra e fosse quebrar, então começo a sentir as lágrimas descendo, o choro espremido, torto, paralisado. Sem consolo, sem remédio. Nunca mais. Nunca mais. Nunca mais. Kaput, e é isso aí. Esqueço toda hora. Uma merda.
Quando papai morreu, escrevi um conto considerado uma das minhas obras primas, o Memorial de Álvaro Gardel (está no Toda Prosa II – Obra Escolhida). Mas papai pedia isso – essa liquidação, esse acerto de contas, essa derradeira humilhação, essa declaração de amor pelo avêsso, esse ajoelhar-se e pedir perdão, aquela confissão. Mas minha mãe é diferente – não que eu não tenha culpa no cartório, não que eu não tenha sido também e de muitas maneiras, cada qual mais sórdida e canalha, uma requintada e cruel filha-da-puta com ela – só que mãe é diferente. Incondicionalmente. Pelo menos, a minha.
De forma que foi uma perda muito rápida, inesperada, com a qual, eu e minha irmã, MariaTeresa, tivemos que lidar – somos as únicas filhas – além de todos aqueles detalhes práticos, burocráticos, objetivos, financeiros, tão penosos nessas horas – afinal, a gente nunca tinha perdido a mãe antes – com a nossa dor.
Essa que, sabemos, vai continuar doendo.
Inesquecivelmente.
PS. Ao Crematório de Vila Alpina – segundo sua última vontade, ser cremada – na segunda de manhã, 14/11, compareceram precisamente cinco pessoas e meia: Eu, Maria Teresa, meu sobrinho Júlio, sua mulher Silvia, grávida de Laurinha a nascer em fevereiro, e Marcelo Mirisola. Entende-se: além de meio de feriado em Sampa, da família de papai estão todos mortos, por outro lado, da família de mamãe, todos já nasceram mortos, exceto tia Graziela, outra beirando os 85, de forma que, inevitavelmente, eu e Marcelo fomos convidados e já aceitamos: seremos padrinhos de Laurinha, com direito a pousada em Carrancas, MG.
Quando a vida renascer.
(1) “Há mais lágrimas derramadas por preces atendidas do que por preces em vão” – Santa Teresa D’Ávila