Quem caminha pelos corredores do Congresso Nacional depara-se com gente que chega de todo canto do país para reivindicar. Gente que busca os seus direitos, gente que defende seus espaços políticos, econômicos e sociais e gente que luta pela garantia de privilégios acumulados ao longo dos anos, pelos quais, visivelmente, a sociedade não está mais disposta a pagar.
Os movimentos das terças, quartas e quintas-feiras dão notícia de uma democracia viva, pulsante, que busca por um colégio de representantes soberano, responsável e competente para resolver as suas questões.
Mas, fora dos corredores do Congresso, longe do mundo democrático, onde a tirania da ignorância, da miséria e do crime produz fome, desespero e dor, existe uma multidão de pessoas – bem maior do que aquela, que, sem força para se impor e exigir ações efetivas de seus representados – incapaz de reivindicar por si só.
Uma multidão que, bem mais do que aquela que nós vemos nos corredores do Congresso Nacional, precisa dos seus representantes para romper a linha do tempo e chegar ao mundo democrático onde a parte privilegiada da população brasileira leva, mesmo que com dificuldade, a sua vida.
O Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) há pouco, no Radar Social, fez um retrato dessa multidão silenciosa:
• Oito milhões e cinco mil pessoas estão desempregadas;
• 25% por cento dos que estão empregados vivem sem garantia trabalhista e, por isso, estarão em situação de penúria, quando lhes faltar capacidade ou oportunidade para o trabalho, e
• 53,9 milhões de pessoas sobrevivem com renda domiciliar per capita de menos de ¼ do salário mínimo, tendo como responsáveis, entre outros fatores, o analfabetismo, que pesa sobre mais de 11 por cento da população e a completa ausência do Estado em suas vidas.
A esses números – já suficientes para comprovar a existência de problemas sociais e econômicos de boa monta – somam-se outros que mostram 25 crianças mortas em cada mil, antes de completarem um ano de idade.
Indiscutivelmente, somos uma sociedade absurdamente dividida, separada por uma brutal desigualdade de renda e de oportunidades, que faz de nós a Nação vice-campeã mundial de desigualdade social. Só perdemos para Serra Leoa.
Para sair disso, precisamos de uma democracia que dê a todos a chance de pressionar e reivindicar pela força da representação política os seus direitos constitucionais. É imprescindível a existência de uma virtude: um Parlamento soberano, independente, mas em relação de plena harmonia com os outros Poderes.
Somos o que somos como Nação, ainda hoje, início do século XXI e ano terceiro da era Lula, porque há uma relação de subserviência e de humilhação entre o Poder Executivo e o Legislativo. Uma relação que esteriliza as nossas possibilidades de, na qualidade de representantes do povo, produzirmos soluções e construirmos caminhos capazes de desatar o nó social.
É possível, com eficácia – e como quer o governo – substituir o Poder Legislativo sem ferir de morte a democracia e as oportunidades sociais da população?
Evidente que não. Primeiro, porque é da essência democrática o equilíbrio entre os Poderes e, depois, porque a agenda do governo, no nosso caso especifico, é permanentemente outra, bem diferente da agenda de prioridades traçada pela sociedade.
Agora, por exemplo, no topo da lista de prioridades administrativas e políticas do governo está impedir que se instale a CPI dos Correios, a despeito de tudo o que se viu e ouviu em imagens nítidas de vídeo, divulgadas em todos os cantos do país.
Enquanto 53,9 milhões de pessoas passam fome, o governo tenta impedir que se investigue em profundidade a prática de um crime que, comprovadamente, responde, junto com a omissão política, por essa realidade.
Numa atitude beligerante, o governo joga todo o seu peso sobre o Congresso Nacional, para – servindo-se daqueles que, no Parlamento, representam-no mais do que representam os seus próprios eleitores – contrariar a vontade de uma sociedade inteira.
Está mais do que na hora de buscarmos de volta as prerrogativas do Congresso. Acabar de uma vez por todas com essa rotina de medidas provisórias, quase todas de dissimulada urgência e relevância, produzidas pelo governo com o único objetivo de tolher as possibilidades legislativas do Congresso Nacional.
Precisamos tornar imperativa a execução orçamentária, porque enquanto perdurar essa situação que faz do Orçamento da União uma história de péssimo gosto, será impossível ao Congresso transformar em realidade as expectativas dos seus representados. E, mais: a rotina de execução orçamentária que hoje vigora, quando somada ao processo de captura do Estado através do preenchimento espúrio de cargos de confiança, termina por desenhar um modelo que une corrupção, financiamento de campanhas eleitorais e impunidade.
Montesquieu, no Capítulo III da obra “O Espírito das Leis” afirma: “para que o governo monárquico ou despótico se mantenha ou se sustente não é necessária muita probidade. A força da lei no primeiro, o braço do príncipe sempre levantado, no segundo, tudo regulamenta ou contém. Mas, num Estado popular, é preciso uma força a mais: a VIRTUDE”.
O momento, portanto, é de arregaçar as mangas e desmontar essa equação que esteriliza o Congresso Nacional e impede o exercício pleno da democracia em direção de todos e de cada um dos membros da sociedade brasileira.
É o momento de se colocar o Poder Executivo no lugar que, de fato, destinam-lhe as democracias e com isso inserir VIRTUDE no processo de representação política. Esse é mais um convite à reflexão, com as coisas nos seus devidos lugares.
* Denise Frossard (www.denisefrossard.com.br) é deputada federal (PPS-RJ), juíza de Direito aposentada e fundadora da Transparência Brasil.
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