Bajonas Teixeira de Brito Júnior*
A velha estória do cavalo na sala de estar. Estava apertada, então colocaram lá todos os bichos que encontravam-se à mão, inclusive um monte de asnos e uma penca de bodes expiatórios. Depois expulsaram a bicharada e puderam respirar à larga, como diria um Assis da vida. Pois bem, as notícias escabrosas que transpiraram dos gabinetes indevassáveis do Ministério da Justiça, e que falam de uma minuta diante da qual o projeto do senador Eduardo Azeredo de mutilar gravemente a internet é pinto, vão nesse sentido. Meu palpite é que essa minuta não é mais que uma manobra técnico-política para fazer o projeto do senador parecer até simpático, e mesmo democrático, e alavancar sua tramitação e aprovação. Por isso mesmo, é preciso falar dela.
As vezes somos levados a pensar que um governo autoritário é, em certo aspecto, melhor que um governo democrático fraco. Num governo autoritário, está claro quem é o inimigo e, como foi o caso na ditadura brasileira, surgem os meios de organização para o enfrentamento de políticas que, para uma grande maioria, são inaceitáveis, e cujos beneficiários podemos apontar com toda clareza. “Em certo aspecto” repetimos, para não deixar margens para entendimentos muito apressados.
Já um governo democrático fraco, busca contemporizar sem fim, engabelar tanto quanto possível as partes com menor poder de fogo no front político, e termina parindo monstruosidades em série. A sensação que se tem, por exemplo, olhando as polícias do Brasil, seus uniformes, cassetetes, escudos, indumentárias, carros, caveiras e caveirões, é quem nunca no país tivemos uma força policial tão bem equipada, tão assistida pelo Ministério da Justiça e pelas verbas públicas. E a segurança pública, está melhor? Todos os indicadores, e as vozes quase unânimes dos especialistas, dizem que não. Muito pelo contrário.
O que lemos em todos os relatórios é que nunca se matou tanto no Brasil, nunca se registrou tantos autos de resistência, nunca se teve uma proporção tão gritante na predominância de ações policiais com resultados fatais.
A única notícia boa que tivemos foi a premiação da foto que mostra uma moradora de periferia de Manaus, uma índia ao que parece, enfrentando sozinha, e com uma criança no colo, a muralha bem equipada e fornida dos policiais que estão ali para auxiliar na destruição de suas casas. A foto do fotógrafo Luiz Vasconcelos recebeu um prêmio no World Press Photo 2009.
Na foto, além da indumentária cinematográfica da tropa de choque, se pode notar, como para invocar a nossa memória sentimental, a deselegância discreta de um cassetete que, saindo de trás dos escudos modernosos de muito bom gosto, assume o ângulo justo para desferir um golpe sobre a cabeça da mulher. Pergunto-me porque esta mulher não foi entrevistada em lugar nenhum. Por onde anda ela e aquele moleque?
E agora vemos este Ministério da Justiça, comandado por um ministro que anda meio desaparecido, depois das polêmicas em torno da situação do italiano Battisti (no que achamos que o ministro acertou. Não ao desaparecer — afinal um ministro não é um coelho habitué de cartolas e fundos falsos, nem um ministério é, ou deveria ser, palco montado para shows de mágica —, mas quando decidiu contra a onda fascista européia), propor-se a dar uma mãozinha a uma legislação que fere inteiramente os interesses da internet democrática. Como sempre, é a fraqueza que impera e termina por decidir. Cercado de lobos em pele de cordeiros, os cordeiros em pele de lobos se vêem em polvorosa, terminando por acatar tudo, desde que os deixem representar o papel de autoridade. Aí fazem marola a favor.
É inconcebível uma internet controlada. É inteiramente regressiva uma legislação que acorrenta o que há de mais livre, leve e solto no mundo hoje. E é muito de se lamentar também que, dado o marco repressivo e criminal para o qual se orienta a lei, sublinhando na internet apenas os crimes digitais, a discussão da internet tenha sido empobrecida até se tornar uma mera caricatura. O que seria preciso para dar passos à frente na internet no Brasil, nem sequer aflora nos marcos da discussão. Nem de longe. A discussão toda, como seu vício de origem, se concentra no aspecto criminal supondo, desde a primeira hora, que crimes são praticados por usuários. Provedores, servidores, empresas, conglomerados, bancos, etc., ocupam o pólo passivo que deve ser protegido de uma sociedade de malandros e criminosos em potencial prontos assaltar as fortalezas da ordem.
É claro, e ninguém tem dúvidas, que os bancos brasileiros andam muito fragilizados, bastando lembrar que na sexta-feira passada (dia 20) foi divulgado relatório da consultoria Economatica que coloca o BB (US$ 3,76 bilhões), o Itaú (US$ 3,34 bilhões), e o Bradesco (US$ 3,26 bilhões), entre os cinco maiores bancos do continente americano. É compreensível que precisem ser protegidos contra os crimes digitais.
A verdade, é que toda a discussão em torno da internet foi encurralada dentro da mentalidade estreita, colonial e justiceira das elites do país. Importa criar mais uma vez as toxinas necessárias à desfiguração de uma novidade que poderia abalar o poder. Sabe-se, hoje, que essa é uma especialidade das elites brasileiras. Assim, por exemplo, depois que foi liquidado o golpe que pretendia despejar Getúlio Vargas do Palácio do Catete — Getúlio nunca foi flor que se cheirasse, mas esta é outra estória —, a mobilização da população carioca, que fez reverter o golpe após o suicídio, deu lugar à demoradas ruminações e reflexões ressentidas que se fortaleceram até, por fim, ganharem concreção (e concreto, muito concreto) com a construção de Brasília.
Quanto se levou por fora em todo esse concreto, em tantos milhares de cobertura asfáltica de estradas e mais estradas, em cada trator empregado e em cada metro de mármore branco? Qual foi o tamanho do rombo deixado no país e que efeitos tudo isso teve para que, hoje, tenhamos a educação que temos, a miséria, a criminalidade, a crônica situação da saúde pública, etc? Ninguém nunca saberá. (Se bem que, fazendo de conta que pensamos como os atuais hóspedes dos palácios e casas oficiais de Brasília, é até possível que naquela época não existisse corrupção no país. Vai saber)
O pseudo modernismo de Brasília, esculpido por um arquiteto de esquerda, mas que nunca se intimidou em laborar para qualquer governo bom pagador, dourou a monstruosidade de internar os palácios do poder à milhares de milhas dos centros urbanos. Este ato arquitetônico deve ser contado entre os mais funestos para a democracia brasileira. Brasília é, a rigor, e cada vez mais quanto mais os seus mosaicos se tornam uma curiosidade histórica, o mais feudal de todos os castelos feudais que a história tem notícia. Separado da população que decide por uma fosso de 1.800 ou 2.000 km. Evidentemente, para quem detém as senhas, as cotas de passagem, o fosso é facilmente sobrepujado através das pontes aéreas.
Mas voltando ao que era o caso em litígio. Há muitos temas mais urgentes e interessantes para serem pensados para a internet no Brasil que o da repressão. A obrigatoriedade de pagamento pelos domínio, na FAPESP, a necessidade de renovar anualmente a posse desse pequeno reduto comprado no ciberespaço, estão entre eles. A regularização de conteúdo nas páginas dos grandes provedores, em que abundam os ensaios provocantes, as gatas que apresentadas em semi-nudez para fisgar o leitor em momento de tédio digital (ou conjugal), sem que se tenham qualquer pudor em relação ao fato de que essas páginas estão ali, com suas imagens, inteiramente acessíveis às crianças, expostas a uma carga sempre mais considerável de provocações eróticas. Ainda, o abuso dos sites em relação aos banners, que muitas vezes se impõe acintosamente ao usuário, e em outras são veiculados indeterminadamente, durante meses, impondo o mesmo monótono apelo em nome dos interesses dos patrocinadores.
A qualidade, confiabilidade e segurança dos provedores de e-mails, também parece que não é objeto de cogitação. E há sinais muito claros, que alguns dos grandes provedores de e-mails no Brasil não tem condições de segurar a carga de usuários que possuem. Mas nada disso parece objeto de consideração. Da mesma maneira, não se vê qualquer fagulha de inteligência e previdência (na verdade, as duas palavras dizem a mesma coisa, e em grego, o nome Prometeu, aquele que deu o fogo divino ao homens, significa “o que vê antes”, isto é, o que prevê) capaz de dar vida a uma lei cuja essência fosse promover uma internet aberta e democrática. O que está previsto para as bibliotecas digitais? O que se antecipa quanto a digitalização das informações de modo amplo, a veiculação de livros eletrônicos, a distribuição de materiais que exigem uma nova maneira de pensar os direitos autorais?
E por falar neles, como ficam os direitos autorais quando tudo pode ser digitalizado? Ou será que não ficam? É possível mantê-los quando a produção intelectual, artística e cultural desde as raízes, torna-se impensável fora da liberdade de conteúdos existente dentro da internet? Mas como normatizar uma situação em que todos conteúdos passam a ser, por princípio, de domínio público?
Como os servidores deverão compensar os usuários cujos sites nele abrigados venha a ser objeto de invasão por scripts maliciosos? Hoje qualquer site brasileiro pode ter o seu gerenciador de arquivos invadido, transformando-se num servidor zumbi de algum hacker para sustentar suas páginas nos EUA, na Europa, etc. Quais às providências para as empresas que não cuidam da segurança? Que eu saiba, nenhuma.
A sociedade brasileira não pode continuar a ser subestimada por um poder que, o tempo todo, ela mesma reconhece que está intelectualmente, e, em muitos casos, moralmente, abaixo dos requisitos mínimos. (É engraçado como no Brasil, sempre falamos no “mínimo”, como se alcançar esse mínimos, para a elite política brasileira, já fosse o máximo). Mas, ao que parece, não se livrará tão cedo dele porque, de um lado, nos acumpliciamos muito fácil com o poder, e, de outro, este poder tem conseguido criar e recriar mecanismos de auto-perpetuação. Até quando, ninguém sabe.
* Doutor em Filosofia pela UFRJ, Bajonas Teixeira de Brito Júnior é professor e pesquisador. Publicou, entre outros, os livros Lógica do disparate (2001) e Lógica dos fantasmas (2008).