Bajonas Teixeira de Brito Junior*
Na semana que passou, todos puderam ver nos portais a história do garoto de 14 anos que, setenta anos depois de executado, foi julgado inocente por uma corte americana. Na foto viu-se uma criança desamparada, inteiramente acuada, olhando com espanto para a lente da máquina fotográfica. Para os contemporâneos, alimentados com o cereal do preconceito yankee, esse rosto era a prova cabal do crime. George Stinney foi na verdade assassinado pelo estado racista americano da época. No Brasil agora, após o crime brutal e barbaramente covarde que vitimou a turista italiana Gaia Molinari, vemos uma jovem negra ser acusada pelo ato. Ninguém está, evidentemente, a salvo de uma acusação. E, em princípio, não se descarta que ela possa ser a criminosa e deva ser punida por isso. Mas espera-se que os procedimentos policiais sejam isentos, claros, técnicos e, principalmente, livres de qualquer mácula de racismo. Mas não está claro, pelo que lemos nos jornais, que esse seja o caso.
Não se vislumbra motivos, nem qualquer vestígio no histórico da acusada, uma estudante de pós-graduação da UFRJ, interessada em questões raciais e sociais no Brasil, como mostra o seu perfil no facebook, que trouxesse ao menos uma sombra de possibilidade de que estivesse envolvida na execução de um crime brutal. A única coisa que foge a rotina da classe média brasileira, é o fato de ser negra. Seria isso um crime?
Repetimos: de modo nenhum afirmamos que não há chance de a acusada ter estado envolvida no crime. Mas apenas que não se pode, julgando pelo que até agora a imprensa e as autoridades apresentaram ao público, concluir que esteve e, menos ainda, que deveria ser presa. O que até agora se viu não mostrou qualquer fato relevante para justificar sua prisão para a opinião pública. A não ser que o fato de ser negra já baste, para uma opinião pública branca e racista, como prova de delito. O silêncio em torno dos pontos obscuros do assunto parece acenar para esta última hipótese.
1) O primeiro fato que chama a atenção é que não teria sido fácil à jovem negra realizar o ato do assassínio da italiana Gaia Molinari que está sendo atribuído a ela. As imagens do cadáver e os comentários da perícia indicam que foi empregada grande força física, com tal violência que o rosto da vítima terminou inteiramente desfigurado. Seria preciso alguém suficientemente forte para isso. Ainda mais que para vencer a resistência da vítima, o criminoso foi ao ponto de estrangulá-la:
“De acordo com o laudo da Polícia Civil, divulgado na tarde de sexta-feira, a turista italiana Gaia Molinari foi morta por estrangulamento. Gaia sofreu vários golpes com objetos cortantes no corpo e no rosto antes de ser asfixiada.”
2) De modo nenhum é claro como uma jovem franzina teria a força necessária para efetuar tudo isso. Mas o caso se torna ainda menos verossímil quando se considera que houve luta corporal:
“De acordo com a Polícia, o corpo de Gaia apresentava também arranhões, reforçando indícios de que houve luta corporal. O subtenente Rodrigues afirmou já existir um ‘forte suspeito’, que é procurado. O caso será investigado pela Divisão de Homicídios.”
A expressão “forte suspeito” aqui tem que significar, também, que esse suspeito é um “suspeito forte”, fisicamente capaz de produzir os efeitos verificados. Segue daqui que, com quase 100% de certeza, teria que ser homem. Senão, com que força praticaria tal brutalidade? Mas um ponto tão significativo é deixado como um ponto cego, sequer tematizado pela delegada.
3) A terceira consequência evidente de tudo isso é que, em havendo luta, em havendo resistência, o que está provado pelos arranhões no corpo da vítima, nada, absolutamente nada, tenha sido dito relativo a alguma marca encontrada na jovem negra farmacêutica. Bastariam essas marcas de luta (arranhões, hematomas, luxações, etc.) no corpo da suspeita para que se tivesse uma prova contundente. Por isso, acreditamos que se elas existissem seriam prontamente reveladas pela delegada como prova final. Mas isso não ocorreu. Nada foi dito, o que faz com que permaneçam dúvidas sérias.
4) Houve uma corrida para divulgar a foto da jovem, mas não houve uma celeridade semelhante para justificar a prisão, apresentado ao público pelo menos uma das contradições apontadas pela delegada. Se, como diz a delegada, ela caiu em contradição “inúmeras vezes”, nada mais simples que pinçar as mais rotundas e apresenta-las ao público. E que não se venha com o argumento vazio de “segredo de justiça”. Na situação de massacrante violência aos direitos dos negros em que vivemos, é preciso começar esclarecendo a responsabilidade dessa prisão. É preciso responder por ele justificando sua necessidade. Os jornais trazem apenas menções a “inúmeras contradições”, mas sequer uma é apresentada. Não basta escorar a afirmação de que constata-se “inúmeras contradições” em outra que fala em “vários indícios e depoimentos que apontaram para incontáveis contradições”. Isso são meras palavras, nada mais que palavras redundantes e tautológicas.
5) Não se entende porquê a jovem foi privada de toda comunicação, sequer conseguindo contato com a família. Como declarou a mãe em entrevista o seu celular encontra-se desligado. Presa e incomunicável? Por quê?
6) Não se escuta a voz, sequer o tênue sussurro, de um advogado que diga uma palavra em favor da jovem negra. O que parece indicar que não está sendo assistida, ou, se está, a situação é pior ainda uma vez que possui uma defesa jurídica que não se pronuncia, que não fala, que não contrapõe, portanto, que não defende e, sendo assim, que é cúmplice de quem acusa.
7) Nessa direção, é nauseante ver a impunidade das elites brancas no país, quando um cantor sertanejo branco com mais de 100 multas nas costas, acumuladas depois de matar no trânsito por bebedeira duas pessoas, é detido por embriaguez, tentativa de fuga e direção com a habilitação vencida desde maio de 2010, e é liberado após pagar uma fiança simbólica, fica difícil entender porque uma jovem negra é colocada incomunicável, quando não houve flagrante e estava fora das 24 horas convencionadas após o crime. A Justiça brasileira costuma, por acaso, ter dois pesos e duas medidas?
8) A delegada se expressa em termos preocupantes, numa linguagem infantilizada e não técnica lançando mão de palavras como “mentiras” (cuja validade é do âmbito moral, não do criminal), o que faz pensar que por essa via espera um efeito de cumplicidade de parte da população em apoio aos seus procedimentos. “Lá, quando ela foi chamada para ser reinquirida, ela não sustentou o que tinha dito inicialmente nem explicou o porquê dessas mentiras”.
Bem, Mirian França, a acusada, é pesquisadora da UFRJ na área de química, em nível de pós-graduação. Portanto, é uma mulher negra articulada. Será que teria tanta dificuldade para manter um discurso coerente e não cair em contradições? Ou será que sua contradição é a de contradizer a delegada nas acusações que essa assoma contra ela? Será que esse contradizer, que significa refutar as acusações, seria o principal motivador da sua prisão? Tendo morado alguns meses em Natal, percebi lá na época uma forte prevenção contra os cariocas. Não sei se ela existe do mesmo modo no Ceará. Mas caso exista, não penso que ser mulher, negra, carioca, inteligente e independente, sejam credenciais que tenham favorecido a acusada.
9) a repercussão ganha a forma de show, e com claras violações dos corretos procedimentos policiais. Se lê por exemplo: “Um policial italiano está em Fortaleza para prestar apoio à polícia cearense”. Isso parece estranho, já que em princípio é uma interferência externa à soberania brasileira. E basta se perguntar o que italiano poderia saber sobre o Brasil, e o que daria a ele a capacidade de “prestar apoio à polícia cearense”, de exercer uma supervisão tutelar, para suspeitar que a condução do assunto está fora de controle. A não ser que, aceitando isso, o estado brasileiro declare tacitamente que ele, esse estado, é uma farsa. Nesse caso, temos que nos preocupar ainda mais com a jovem negra que caiu em suas garras.
10) Os jornais estão construindo uma versão, que, ao que parece, provém da própria lógica da Justiça do Ceará, essa que admite um policial italiano prestando apoio num país em que nem a língua ele conhece, em que, na ausência de fatos, se preenche os vazios com frases que já pressupõe acontecimentos. Assim, uma postagem da farmacêutica num fórum é apresentada como uma prova em matéria do G1: “Suspeita disse que estaria em Jericoacoara entre 18 e 31 de dezembro; crime ocorreu dia 24”. A narrativa constrói uma imaginária relação de inserção de causa num contexto que, ao contrário, não deixa espaço para isso. O fato de ter exposto seu itinerário e planos de viagem nas redes sociais mostra apenas que não há nada de suspeito. Ao menos até esse ponto. Mas a matéria, ao nos explicar que a “suspeita” disse que “estaria em Jericoacoara entre 18 e 31 de dezembro” e o crime “ocorreu dia 24”, essas frases ocas são usadas como se estabelecessem uma prova.
É interessante que no post a jovem busca companhia para a viagem. Penso que isso poderia se dever justamente ao risco que qualquer mulher corre ao viajar sozinha pelo país, mas, principalmente, em sendo negra. Certamente ela não previa o risco de uma acusação e uma prisão, mas isso também pode ser um. Sua postagem é de 13 de julho de 2014, o que mostra que planejava com bastante antecedência e responsabilidade a viagem.
O mesmo raciocínio por amalgama de identificações preconcebidas, que no fundo é apenas uma máquina de acionar preconceitos, se mostra ainda mais contundente na página do G1 Ceará.
Ora, por favor, que conexão existe entre uma coisa e outra: Por quê apresentar a manchete sobre ela buscando companhia na web em letras garrafais? Existe aqui, de fato, um esforço de indução do leitor. E isso, por si só, mostra um vácuo de fatos efetivos que atestassem a culpa da jovem farmacêutica negra, vai sendo preenchido com idiotices, apresentadas como descobertas. Tudo isso é muito eloquente sobre como a situação toda está sendo conduzida.
11) A afiliada da local da Globo está mobilizada para dar forma de show ao acontecimento. O trecho que citamos acima, referente a conversa da jovem em busca de informações sobre um albergue em Fortaleza, é apresentada como algo que foi descoberto e vem servir à elucidação do crime. Puro abuso semântico. E podemos ler nos créditos dessa imagem: Reprodução/TV Verdes Mares. Na mesma matéria do G1 aparece o momento de dar forma solene ás investigações tão pouco claras, como mostramos, com uma coletiva da imprensa em que figuram a delegada, e outras autoridades, entre elas o cônsul da Itália. Não se lê, contudo, nada de substancial que tivesse justificado essa coletiva. Ou foi a prisão da “suspeita” negra calibrado para dar lastro a essa exibição pública?
No pesadelo de uma acusação criminal, num interrogatório, uma pessoa pode se confundir. Ou mesmo, suas palavras podem ser confundidas e distorcidas, e se pode encontrar contradições que não existem. O acompanhamento de um advogado tem a finalidade de evitar justamente essas consequências perversas, que de tão repetidas levaram os estados modernos a garantir essa defesa para os acusados que não dispõem de um advogado. Se alguém fica nervoso e se confunde, cometendo erros que irá ruminar pela vida afora, às vezes com uma simples reunião social, com uma prova de vestibular, com uma entrevista de emprego, imagine-se diante de uma acusação de assassinato. As contradições podem acontecer sempre. Mas qual o seu teor? Essenciais, decisivas, ou em questões desprezíveis, tais como qual era a cor da armação dos óculos que X usava no momento? Só dando a conhecer ao público as tais “inúmeras contradições”, se poderá avaliar se elas justificam de fato a prisão. Por isso, é realmente de admirar que não sejam apresentadas à opinião pública as contradições que permitiram, ao que tudo indica, à delegada desvendar o crime. Isso é muito importante. Aliás, não é todo dia que um crime é desvendado através de contradições. Mesmos os criminosos mais despreparados não costumam cair em contradições. Por isso, é de espantar que uma jovem farmacêutica, se participou de um crime tão brutal, não tenha sabido inventar uma versão sustentável. Tanto mais que, ao que parece, nenhum objeto, pertence, ou o que seja, que a implicasse no crime, foi encontrado. Até agora vejo muito mais uma situação de abuso de poder que de necessidade real para as investigações.
Esse, me parece, que é um daqueles casos em que há interesse dos negros, de seus movimentos, seus coletivos, suas associações de mulheres, em acompanharem de perto os procedimentos empregados, e questionarem sempre que notarem a necessidade disso. Amanhã, quase com certeza, o caso sairá da mídia, mas pode ser que a ‘suspeita’ continue na prisão.
*Bajonas Teixeira de Brito Junior é doutor em Filosofia, autor do ensaio, traduzido pelo filósofo francês Michael Soubbotnik, Aspects historiques et logiques de la classification raciale au Brésil (Cf. na Internet), e do livro Lógica do disparate