Marcelo Mirisola*
Faz um tempão, desde que os generais abandonaram os palanques, que deixei de prestar atenção em feriados e recessos no calendário. Eu era criança e – naquela época – morria de medo do locutor oficial do desfile. Ficava paralisado diante das carrancas das autoridades e de suas respectivas mulheres mal encaradas. Tirando o 7 de setembro, sempre fiz uma confusão danada com datas e efemérides. Sei que quarenta dias depois do Carnaval vem a Páscoa e que a Quarta-feira de Cinzas é o dia em que os bicheiros das escolas de samba vão quebrar o pau nas arquibancadas da Marquês de Sapucaí. O resto, pra mim, é aquilo que Boris Vian chamou de “espuma dos dias”. Um calendário inverossímil, triste e sonolento. E acrescento: desnecessário, incluídos o meu aniversário, o dia do contabilista e o Corpus Christi – que eu associo vagamente a Santana do Parnaíba e a crianças brincando às margens de um longo tapete de serragem.
No último dia 22, no final da tarde, vi uma multidão colorida nas ruas. Pensei: deve ser a Parada Gay. Mais um acontecimento sonolento e igual aos outros. Deixei pra lá, e fui conferir o nome da calle
Na manhã seguinte vi a multidão colorida de quinta-feira estampada na manchete de todos os jornais. Taí, pensei: era mesmo a Parada Gay.
Me aproximo da banca, ainda com remela nos olhos, e vejo o jogador de futebol Kaká acenando para a multidão supracitada. Ué, o Kaká? Não era pra ser o Ronaldinho?
O jogador fazia uma pose de Mussolini, e sua esposa grávida o acompanhava, ambos usavam óculos escuros e acenavam para mais de um milhão de pessoas. Esquisito. O que se passava? Comprei o jornal, tirei as últimas remelas dos olhos, e li: “Marcha para Jesus, organizada pela Igreja Renascer em Cristo, reuniu 1,2 milhão de pessoas”.
Ah, bom. Estava explicado: era mesmo aquilo que eu pensava. Mais um acontecimento monótono e sonolento. Uma data para ser confundida e desprezada. Igual à Parada Gay que, depois de três dias, reuniria outra multidão ordeira e pacífica em torno de um curral que se estenderia da rua da Consolação até a Brigadeiro Luís Antônio.
Na quinta-feira passada, Kaká e a labirintite coletiva dos Filhos de Jesus & da Bispa que foi condenada por contrabando de dinheiro. No domingo, Salete Campari, os covers do Village People, Monique Evans e as mesmas histerias e convulsões do ano passado. Duas multidões. Para mim a mesma multidão. Não consegui fazer diferença. Qual a diversidade?
Ao discorrer sobre o “Discurso da Servidão Voluntária”, de
Taí. Imaginem dez por cento da massa da Parada Gay e dez por cento da marcha da Bispa contrabandista. Isso daria mais ou menos – por baixo – umas quinhentas mil cabeças.
Sim, cabeças. Porque, antes de qualquer coisa, são “princípios de reunião e de unidades”; todos iguais, ordeiros, pacíficos e coloridos. Tudo gado. E o Stédile querendo fazer revolução no campo, acorda Stédile! Se a energia e a disposição desse povo-gado se voltassem para Brasília, em vez de se voltar para as próprias bundas (ou almas, dá no mesmo), teríamos no mínimo um maio de 68 elevado à vigésima potência.
Não ia sobrar um mensaleiro em Brasília, e de Brasília o fluxo invadiria as festas da Hebe Camargo no Morumbi (um alívio para a velha apresentadora: afinal, ela teria alguém para acusar de ladrão); e, dos altos do Morumbi, a coisa desceria no sentido sul, via Hebraica, Shopping Iguatemi e clube Pinheiros até alcançar o prédio da Daslu, na Vila Olímpia, ia ser uma faxina exemplar.
Invertido o ponto de vista, não sobraria um roteirista no Projac, a coisa ia ser pra valer. Em Paraty haveria uma insurgência no solar do príncipe dom Joãozinho, e todos os escritores e puxa-sacos reais teriam de escrever feito gente grande: sem rimas, planilhas e trocadilhos.
Nem Unibanco, e nem Petrobrás para patrocinar a picaretagem. A nova massa de insurgentes contra Jesus e contra os bundões iria seqüestrar os mocassins de franjinhas dos coxinhas da grande imprensa. Não sobraria um aforismo “pequenas empresas, grandes negócios” para contar a história. As camisetas Pólo dos mauricinhos líricos não serviriam nem para limpar o vidro de seus caixas eletrônicos. Doze por cento somente lá em Cannes que os pariu!
Talvez por conta do ímpeto da própria juventude, 1968 agoniza até hoje. Creio que escapou um dado fundamental aos jovens daquela época. Lembram do autor de “O casamento”? Nelson Rodrigues aconselhava aos jovens: “Envelheçam, envelheçam”.
O passo seguinte está implícito: morram, morram. Aí está: 1968 esqueceu da morte. Os jovens de 68 se abstiveram da morte, e por isso viraram oxímoros, espectros de si mesmos. A vida só é bela porque não tem o alto valor que geralmente lhe atribuímos. A morte devia pesar mais na hora da contabilidade. Uma vez que, além de ser corretiva e resplandecente, prescinde de organização e investimentos públicos. Tem uma reverberação meio incômoda no começo, um trinado meio esquisito, mas dá para suportar: diferentemente da barulheira dos trios elétricos e da Ivete Sangalo.
Somente assim, aproximada da morte, a beleza poderia de fato voltar às ruas. A beleza dos cemitérios e da liberdade. Não essa falsidade-curral colorida, mas a beleza dos jovens que voltariam a ser jovens novamente e que, em vez de exigir respeito do português da padaria, ordem, regras e disciplina e um Jesus quentinho para salvá-los da babaquice, exigiriam o impossível, a eternidade, a imaginação de fato no poder. Para que o poder? Ora, para ignorá-lo, para enterrá-lo.
Dez por cento dessa massa amorfa e bovina seria mais do que o suficiente para extinguir com as esperanças, a “qualidade de vida” e o futuro bundão dos outros noventa por cento de eunucos coloridos. Ao todo um rebanho de quase cinco milhões. Nenhuma confusão, marcha pacífica. Ora, pro inferno gado amaldiçoado! Uma noite de maio, e nada mais.
Aí é que eu queria ver. Eis o grande confronto: a subjetividade contra a babaquice. A boiada iria estourar, arrebentaria a metafísica e enfiaria o sexo no único buraco excitante e realmente confiável que existe: o túmulo. Bastaria uma noite de maio, apenas. Doze horas de um Rolex dourado. Uma única noite. Em vez de celebrar o turismo de eventos e o Jesus quentinho que a Bispa tesuda contrabandeou da cruz direto para os cofres de sua Igreja (sediada na prisão de Miami), em vez disso, a massa de insurgentes contra Jesus e contra os bundões, celebraria Baudelaire e As Flores do mal.
Imaginem o grand finale: “Sonhando o belo que tortura/
Eu não terei a honra,ao que cismo,
De dar o meu nome ao abismo
Que há de ser minha sepultura.”
Quinhentas mil pessoas, já pensaram? Subjetivas, descontroladas. Bastaria inverter o ponto de vista. Nem Carmem Miranda. Nem Jesus Cristo. A libido finalmente ocupada pela negação. O filtro da alma não pode ser o ânus.
** Antes de Borges, o Aleph tinha lá seu encanto e austeridade. Vivia sua vidinha reclusa e grandiosa na calle Garay. Na casa dos Viterbo, no vão de uma escada. O problema é que foi nomeado. Como era o infinito em um só, e era todos de uma só vez, aproveitou-se da suposta cegueira do argentino, e deu o pinote. Saiu da periferia de Buenos Aires, e ganhou as ruas do mundo. Caiu na gandaia. E, claro, degenerou-se. Isso aconteceu em 1949. De lá para cá,o Aleph virou arroz-de-festa. Ostenta o ir e o vir. Num dia pode ser o assassino do seu filho. No outro, pode ser o reflexo no seu espelho.
*Marcelo Mirisola, 42, é paulistano, autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros. Publica em revistas, sites e jornais de todo país.