Manoel Pastana *
Na manhã do dia 6 de junho de 1978, o agente penitenciário Antonio Santoro dirigia-se a pé, de sua casa para o trabalho (penitenciária de Udine, Itália). No caminho, um assassino frio e covarde, com barba e bigode postiços, e uma mulher, que usava peruca, fingiam namorar em uma esquina. Quando Santoro passou pelo casal disfarçado, o criminoso o atacou pelas costas com dois tiros de pistola à queima-roupa. A vítima não teve chance de defesa e tombou morta. O nome do assassino: Cesare Battisti. Ele e sua cúmplice fugiram em um carro no qual se encontravam dois comparsas que davam cobertura.
As histórias dos quatro homicídios pelos quais Battisti foi condenado são muito parecidas. No cômputo das mortes, nenhuma autoridade. Parece que o criminoso era covarde demais e não tinha coragem de atacar autoridades. As outras vítimas foram: Lino Sabbadin, açougueiro; Pierluig Torregiani, joalheiro, morto numa emboscada quando caminhava ao lado de dois filhos menores, sendo que um deles foi alvejado, ficou paralítico e até hoje usa cadeira de rodas. A última vítima de Battisti foi Andrea Campagna, policial executado ao lado do futuro sogro, no dia 19 de abril de 1979, às 14hs, quando retornava do almoço com a namorada, o que fazia todos os dias.
Na Itália, embora o suspeito possa exercer a defesa ainda na fase de investigação, uma vez que lá existe o juiz de instrução, que não é o mesmo que julga (o que facilita a defesa), Battisti preferiu fugir a se defender, certamente sabedor de que o sistema de investigação italiano, um dos melhores do mundo, iria descobrir os seus crimes. Fugindo, teria a desculpa de que foi julgado à revelia, tese falaciosa que usa até hoje para esquivar-se da responsabilidade pelos terríveis crimes praticados.
Após perambular foragido por diversos lugares do mundo, Battisti foi morar na França. Quando a França autorizou a extradição, ele fugiu para o Brasil (por que escolheu justamente o Brasil?). Aqui, Battisti pediu refúgio. O Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) negou o benefício, mas o então ministro da Justiça e hoje governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, alegando se tratar de crime político, contrariou o que dispõe a Lei 9.474/97, e concedeu refúgio ao condenado italiano.
O Supremo Tribunal Federal (STF) anulou o refúgio, asseverando: 1) que não se tratou de crime político; 2) que a Justiça Italiana respeitou os direitos do acusado; e 3) que a condenação foi por crime comum (quatro homicídios qualificados). Após concluir pela regularidade do processo condenatório, que fundamentou o pedido de extradição, a Suprema Corte autorizou-a; porém, deixou ao Presidente da República a última palavra. O ex-presidente Lula, no último dia do mandato, negou a extradição. O governo italiano apresentou reclamação, mas o STF não a conheceu (não julgou o mérito), e soltou o criminoso italiano.
O artigo 102, inciso I, alínea g, da Constituição Federal preceitua que a competência para processar e JULGAR a extradição solicitada por Estado estrangeiro é do Supremo Tribunal Federal. Na faculdade, aprendi que o julgador dá a última palavra, até por razões óbvias, pois, se assim não o fosse, não haveria necessidade de julgamento, porquanto litígio não haveria. No caso em epígrafe, estava patente a controvérsia litigiosa entre a Itália e Battisti. Além disso, o mesmo se verificava entre autoridades administrativas da Itália e do Brasil. Logo, razão maior teria o Supremo para decidir o caso.
O STF, no entanto, ao contrário do que diz a Constituição Federal,entendeu que não é ele (o tribunal) quem decide sobre extradição, mas sim o presidente da República. Considerando que decisão judicial cumpre-se ou recorre-se, e não há mais para quem recorrer judicialmente, só vejo uma forma de resolver o imbróglio: recorrer à autoridade que, conforme o entendimento do STF, tem competência para julgar a extradição, isto é, ao presidente da República, no caso, a presidente Dilma.. É que o STF já autorizou a extradição, basta cumpri-la. E o fato de o ex-presidente Lula ter negado o cumprimento não encerra a questão.
O Supremo decidiu que a extradição é ato de política internacional e esta, pela própria natureza, é mutável, não fazendo coisa julgada. Ademais, se atos judiciais estão sujeitos a pedido de reconsideração, a fortiori, atos administrativos. Assim, a decisão de Lula, negando a extradição, pode e deve ser submetida a pedido de reconsideração, enquanto não ocorrer a prescrição da pretensão executória. A presidente Dilma tem o dever legal de cumprir o Tratado de Extradição com a Itália, promulgado pelo Decreto 863, de 9 de julho de 1993, sob pena de incidir no crime de responsabilidade previsto no artigo 5º, item 11, da Lei 1097/50.
A última decisão do STF (que culminou na soltura de Battisti) não disse se Lula acertou ou não, ao negar a extradição, pois o Supremo não conheceu da reclamação manejada pelo governo italiano. Na verdade, o STF foi apenas coerente com a sua decisão anterior, que autorizou a extradição, mas deixou ao presidente o cumprimento.
Agora, o que importa é a autorização da extradição, até porque essa decisão transitou em julgado. Isso quer dizer que, tanto a presidente Dilma quanto o vice-presidente, se estiver no exercício da Presidência, assim como quem suceder, pode e deve, a qualquer tempo (enquanto não ocorrer a prescrição da pretensão executória), efetivar a extradição. Para isso, basta comunicar ao Supremo que irá cumprir a extradição, não precisando refazer o procedimento extraditório, pois isso já foi realizado e transitou em julgado, não podendo mais ser questionado.
A exemplo de Battisti, que se utilizou de expedientes para não cumprir a condenação, Lula fez a mesma coisa: negou a extradição no último dia do seu mandato, pois assim não correria o risco de responder pelo crime de responsabilidade, previsto no artigo 5º, item 11, da Lei nº 1097/50, que estabelece como crime de responsabilidade do presidente da República: Violar tratados legitimamente feitos com nações estrangeiras.
Como visto, o Supremo abriu mão de sua competência constitucional, decidindo que o julgador da extradição é o presidente da República. Todavia, a Corte Máxima não chegou ao extremo de dizer que o presidente poderia decidir como bem lhe aprouvesse, pois enfatizou que deveria observar os tratados internacionais e, ainda que nada dissesse, é obrigação do presidente da República, pela dignidade do cargo e o nome do país perante a comunidade internacional, respeitar os tratados internacionais, sob pena de responder por crime de responsabilidade (art. 5º, item 11, da Lei nº 1097/50).
O presente artigo em versão completa é complexo, pois analiso o parecer da Advocacia-Geral da União (AGU), que serviu de fundamento para Lula negar a extradição, e apresento a forma como proceder para que o Brasil cumpra o tratado de extradição e entregue Battisti à Itália.
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Para ler o parecer da AGU, outros documentos, os meus artigos recentes, assim como informações sobre o livro De Faxineiro a Procurador da República, no qual revelo os bastidores do poder e do Ministério Público Federal, estão no meu site (site em construção cujo objetivo é ajudar estudantes, bem como publicar informações e críticas contundentes, mas responsáveis sobre diversos assuntos de interesse geral).
* Procurador da República e escritor.
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