Se forem comparadas biografias, intenções e parcerias, Dilma Rousseff, do PT, e José Serra, do PSDB, se equivalem do ponto de vista ideológico. Por isso é que lá atrás, no começo da campanha, quando, no momento do discurso mais interno, para convencer militantes, o PT começou a dizer que Dilma era a opção de esquerda para conter a volta dos conservadores, eu escrevi que tinha “caô” nesse embate ideológico.
Dilma, com o PMDB de hoje e os PPs e PRs da vida ao seu lado, fica tão limitada quanto Serra ao lado do DEM. Enquanto perdurar essa fragmentação partidária e a noção de que não dá para governar de outro jeito senão cedendo para obter apoios e maiorias no Congresso, a coisa não vai mudar. Com essas duas premissas, qualquer governo caminha para o centro.
De um modo geral, a situação é essa. Mas as estratégias adotadas especialmente pela turma de José Serra neste início de segundo turno estão confirmando a demarcação de terreno que o PT pregava lá no início da campanha, no começo do ano. Se alguém desembarcar de Marte neste momento, sem conhecer passados e posturas dos dois candidatos à Presidência, dirá, sem sombra de dúvida, diante do debate posto sobre a legalização do aborto, que Serra é de direita. O problema para a campanha de Dilma é que esse marciano talvez tenha alguma dificuldade para definir a candidata do PT como sendo de esquerda.
Sem dúvida nenhuma com a autorização de Serra, que incorporou esse discurso, a turma mais conservadora de sua campanha montou uma armadilha para Dilma com esse debate periférico e pouco útil sobre o aborto. E Dilma, pelo menos até o momento, vem caindo com um patinho na esparrela. Na reunião feita pelo PSDB na semana passada para comemorar suas vitórias no primeiro turno e a passagem de Serra para o segundo turno, um panfleto distribuído apontando que Dilma era a favor do aborto, do casamento entre homossexuais, etc, tinha a assinatura da famigerada Tradição, Família e Propriedade (TFP), uma múmia direitista que saiu da sua tumba para aderir à campanha tucana. Mas lá estava Serra em seu discurso dizendo que Dilma mudava suas convicções sobre o tema conforme a ocasião, que mudava com o vento, etc. Tudo sairia de forma perfeita no script combinado não fosse o ato falho de Serra ao dizer primeiro que era a favor do aborto para corrigir-se em seguida.
Na verdade, o que vem mudando de acordo com o vento nessa campanha é a utilização feita desses temas ligados ao comportamento. No primeiro turno, Marina Silva é que era atacada por ser evangélica e pessoalmente contrária ao aborto, à união homossexual e à pesquisa com transgênicos. Ela chegou mesmo a reclamar que ninguém perguntava a ela sobre outros temas além desses, e disse a este Congresso em Foco que se sentia discriminada por suas convicções religiosas. Na ocasião, a intenção era tentar diminuir a votação que já se apontava em favor de Marina de jovens e pessoas de esquerda descontentes com o PT. Agora, provocada pelos mesmos grupos, a utilização desses temas deu uma guinada para a direita para atingir Dilma.
Ficaria demarcado um embate entre um pensamento mais liberal em termos de comportamento social e outro mais conservador. Se Dilma e sua equipe de campanha não tivessem mordido a isca jogada pelos adversários. Dilma faz um recuo na discussão do assunto convencida de que já foi a exploração de tal tema que a fez perder votos no primeiro turno, levando a eleição para o segundo turno com Serra. Por esse raciocínio, isso é que teria engordado os votos de Marina. Pode até ser que sua equipe tenha números de pesquisas que demonstrem isso. Mas parece algo pouco provável, pelos resultados conhecidos de Marina. Ela cresceu em grandes centros. Ganhou a eleição em Brasília, por exemplo. A maioria de seus eleitores era das classes mais escolarizadas e da classe média alta. Não parece bem o perfil que pautaria seu voto por tal discussão.
A candidata do PT se embanana toda no recuo que vem fazendo. E termina por produzir um discurso sobre o tema que parece mesmo oportunista, eleitoreiro. Porque nega tudo o que ela e o PT sempre disseram.
Historicamente, o discurso petista sobre o aborto prega que esse é um tema de saúde pública. Milhares de mulheres morrem ou sofrem graves problemas porque procuram clínicas clandestinas para fazer aborto. O partido sempre pregou que a rede pública deveria dar assistência a essas mulheres. Dilma mesmo já deu entrevistas defendendo tais posições. Ao recuar atabalhoadamente dessas convicções, Dilma está mesmo passando uma impressão de que seu discurso agora não é sincero, é apenas mero cálculo eleitoral.