Conversando há alguns dias com meu grande amigo Ítalo Moriconi (poeta, crítico), mencionamos que grande tema dariam as gerações pós-90 como Gerações Deserdadas – deserdadas de “nós”, os de 80,70 e 60 (e quem mais estiver vivo). Contudo, o que seria uma proposta prévia de mea-culpa desbordou em – ao sabor do tempo e da reflexão – equívoco.
Não, meu querido Ítalo, nós não deserdamos ninguém. Todos fomos espoliados, eis a questão.
Pois o mercantilismo feroz dos nossos dias, ao nos espoliar dos ideais, dos sonhos, dos projetos e, naturalmente, das esperanças futuras – em suma, de tudo aquilo o que seria IMPALPÁVEL –, nos roubou precisamente a REALIDADE MATERIAL, deixando em seu lugar apenas escombros, uma sucata de vida e cultura implodida em fragmentos desconexos.
E naturalmente a crueldade. A paradoxal ilimitação da violência de guerras da parte de sociedades pós-militares. Com a onipotência (e a inconsciência dum cosmo ou mundo organizado que tal sociedade já não tem), a violência virou uma segunda natureza e o ato de matar, roubar, violar e espoliar, uma rotina. Sobretudo simbólica, imaterial e, esta sim, sua PRIMEIRA NATUREZA.
Donde a plena realização distópica.
Por isso, quando leio os textos de Mirisola (um dos últimos publicados aqui, com personagens cujos nomes se resumem a uma única sílaba, a Ki, o Ku, ou uma perífrase debochada, como a Japa do contábil, todos desvivendo, posto que vivem apenas em função das postadas no feicebuque), do André Sant’Anna (sobretudo aquele conto “A lei”), o romance Pornopopéia do Reinaldo de Morais, TUDO do Bortolotto, sinto, sei, compreendo perfeitamente que eles estão fazendo seu serviço de continuidade literária direitinho, às mil maravilhas, ao qual nada tenho a acrescentar senão meu próprio assombro, minha náusea, meu desespero.
Alain Badiou considera que vivemos num espaço social experimentado pouco a pouco como “sem mundo” (e nesse espaço, a única forma que o protesto pode assumir é a violência desprovida de sentido). Isto é, desmundo (tomando emprestado o título do romance de Ana Miranda, mas tenho a impressão que essa expressão é um achado verbal ainda mais antigo: alguém aí lembraria de quem?).
PublicidadePor que eu nasci, cresci e vivi numa época onde a “civilização brasileira” ainda existia, bem como o futuro era possível e a vida fazia sentido. Algo intransmissível às gerações posteriores – daí o equívoco quanto ao suposto deserdamento das futuras gerações – a quem coube, isto sim, e nas palavras também do crítico Roberto Schwarz, testemunhar não um mundo, um cosmos, mas o caos, o declínio, a queda, o desmanche em todo seu esplendor.
E sua total falta de sentido. Nesta sexta-feira da paixão.