Celso Lungaretti*
A nota oficial lançada pelo Alto Comando do Exército é inaceitável para qualquer democracia, pois coloca essa Arma acima dos três Poderes da Nação.
Tudo começou com o lançamento do livro Direito à memória e à verdade, uma espécie de relatório final dos trabalhos da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos do Ministério da Justiça, que atuou durante 1995 e 2006, analisando 339 casos de possíveis vítimas da ditadura militar de 1964/85.
Estão no livro os resumos de todos esses processos, tanto os 221 deferidos quanto os 118 negados. Para completar, a Secretaria Especial de Direitos Humanos incluiu também tópicos relativos aos 136 cidadãos que já haviam sido reconhecidos como mortos ou desaparecidos pela lei 9.140 de 1995.
Se tais processos confirmam que as Forças Armadas torturaram, estupraram, assassinaram, esquartejaram, decapitaram e ocultaram cadáveres dos opositores do regime de exceção, então essa já era a posição oficial do Estado brasileiro, que reconhecera o fato de que cidadãos foram vítimas desses crimes, tanto ao promulgar a Lei 9.140 quanto ao longo dos trabalhos da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos (bem como dos da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, que está concedendo reparações aos sobreviventes dos massacres).
Devido à tibieza com que as autoridades têm enfocado os crimes cometidos durante a vigência do terrorismo de Estado no Brasil, os defensores dos direitos humanos saudaram a edição do livro como a oficialização de algo que todos já sabiam, mas ninguém afirmava com todas as letras.
O ministro da Defesa, Nelson Jobim, entretanto, escolheu uma péssima ocasião para afirmar uma autoridade de que, aparentemente, não dispõe. Afirmou esperar que as Forças Armadas recebessem com naturalidade essa iniciativa do governo em prol da reconciliação do país, mas concluiu com uma bravata pueril: "Não haverá indivíduo que possa reagir. E, se reagir, terá resposta".
Foi o pretexto de que o Alto Comando carecia para manifestar seu inconformismo com a revelação da verdade histórica.
A nota oficial lançada representa uma quebra de autoridade, já que desautoriza o ministro da Defesa e coloca em dúvida (“até porque os fatos históricos têm diferentes interpretações, dependendo da ótica dos seus protagonistas”) o acerto das iniciativas do Estado brasileiro para reparar as atrocidades cometidas durante os anos de chumbo.
Não, esses fatos históricos têm uma interpretação unânime por parte dos historiadores eminentes e uma interpretação única do Estado brasileiro. Ao Exército cabe aceitá-la e não contestá-la, caso contrário estará em dissonância com os “valores da disciplina, da hierarquia e da lealdade” que, na sua nota, afirma cultivar.
Pior ainda é a afirmação de que colocar em questão a Lei da Anistia de 1979 “importa em retrocesso à paz e à harmonia nacionais, já alcançadas”. Significa que, como nos tempos sombrios do AI-5, as Forças Armadas continuam atribuindo ao Executivo, ao Legislativo e ao Judiciário o papel de apenas obedecerem às ordens da caserna. Modificar ou não qualquer lei é uma decisão que, numa democracia, cabe aos Poderes da Nação e não precisa ter a anuência do Exército.
Finalmente, é inquietante o trecho que diz: “Não há Exércitos distintos. Ao longo da história, temos sido o mesmo Exército de Caxias”. Implica que, embora o Exército afirme agora estar “voltado para suas missões constitucionais”, não renega o período no qual, submetendo-se à vontade de golpistas que usurparam o poder, ajudou a rasgar a Constituição.
Para que haja uma verdadeira reconciliação nacional, não a imposição da paz dos vencedores sobre os vencidos, é imperativo que as Forças Armadas brasileiras reconheçam que a ditadura de 1964 não passou de uma aberração, assim como o nazismo na Alemanha e o fascismo na Itália. Suas congêneres desses países renegam o período em que, submetidas ao comando de forças totalitárias, atentaram contra os direitos dos povos e dos cidadãos.
É hora de o Exército brasileiro fazer o mesmo, voltando realmente a ser o Exército de Caxias. Até lá, haverá sempre a suspeita de que se trate do Exército de Brilhante Ustra – aquele antigo comandante do DOI-Codi que, na frase imortal do ex-ministro da Justiça José Carlos Dias, “emporcalhou com o sangue de suas vítimas a farda que devera honrar”.
POST SCRIPTUM: É HORA DE REVER A LEI DA ANISTIA
Este artigo foi escrito no último dia 2, depois que o governo federal, Jobim e os militares resolveram dar o episódio por encerrado, não comentando-o mais.
Foi o desfecho ideal para o Alto Comando do Exército, que desacatou o ministro da Defesa e contestou as posições e programas oficiais impunemente.
Já Jobim e o governo federal saíram de joelhos, engolindo sapos para uma vida inteira (em seu nome e, infelizmente, no nosso também, já que nos representam ou deveriam nos representar).
Esperamos desde 1985 que a verdade sobre a fase negra do terrorismo de Estado seja proclamada em alto e bom som pelos governos que elegemos – e teremos de continuar esperando, já que o atual recua ante o primeiro blefe.
Se o governo federal quiser dar a volta por cima, basta abrir a discussão em torno da manutenção ou não da Lei da Anistia.
Usando como moeda de troca os resistentes que estavam presos e os exilados que queriam retornar ao país, os militares impuseram em 1979 o perdão antecipado de suas práticas hediondas.
Foi, como o AI-5, o cerceamento da Justiça, à qual se negou o direito de decidir sobre ocorrências que eram principalmente de sua alçada, já que consistiam em crimes – e dos mais bestiais. Tanto quanto o AI-5, essa lei já deveria ter sido há muito revogada, como parte do entulho autoritário.
Será uma ignomínia se, vergando-se ao ultimato do Alto Comando do Exército, o governo Lula não tiver vontade política para seguir os passos da Argentina e do Chile.
* Celso Lungaretti, 56 anos, é jornalista em São Paulo, com longa atuação em redações e na área de comunicação corporativa, e escritor. Escreveu Náufrago da utopia (Geração Editorial, 2005). Mais dele em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/.
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