“Deixe as águas rolar” é o título de uma música sertaneja, de André e Andrade, cujos versos iniciais são: Deixe as águas rolar, / Deixe a poeira abaixar, vou achar uma saída / Nada vai atrapalhar e Deus vai ajudar / Vou consertar minha vida. Certo que eles cantam isso para conquistar uma mulher, mas o verso serve para o propósito deste artigo.
Gosto de música sertaneja, principalmente das antigas. Do chamado country universitário, sertanejo universitário, ou o que valha, quero distância. Muita distância.
Imagino que o senhor Carlos Cachoeira, como filho de mineiro, também deve gostar de música sertaneja. Qual de suas vertentes não sei e tampouco quero saber.
Entrei na internet pensando: está terminando a CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito. Aviso aos desligados: “mista” porque Câmara e Senado trabalham juntos) e preciso escrever sobre ela. Mas há tanta coisa a se escrever que não sei por onde começar. Não sabendo por onde começar, me perguntei: depois de tanta água ($) que passou por essa cachoeira e com tanto$ turbilhõe$, desvio$ e conexõe$, por onde começar?
De início, me veio a ideia de começar citando uma música (samba ou marchinha de carnaval), da qual não sabia corretamente o nome. Não sabendo o nome fui ao Google para localizá-la e digitei “deixe as água rolar”. É que para mim água a rolar dá a ideia de cachoeira.
Dia desses, no país das injustiças, Carlos Cachoeira foi colocado em liberdade. Pois bem, ao ler esta letra de música, pensei: será que se ele conhece esta música e deseja se recuperar? Se sim, deve ter saído da cadeia cantando: Deixe as águas rolar, / Deixe a poeira abaixar, vou achar uma saída / Nada vai atrapalhar e Deus vai ajudar / Vou consertar minha vida.
Carlos Augusto de Almeida Ramos é filho de Sebastião de Almeida Ramos, cujo apelido é Tião Cachoeira, em função do nome de uma fazenda em Araxá, Minas Gerais, de onde viera. No final dos anos 1950, Tião Cachoeira mudou-se para Anápolis, em Goiás, onde se tornou um dos donos do jogo do bicho. Do pai, portanto, Carlos herdou o apelido e a inclinação ao jogo ilegal.
A CPMI foi instalada em 25 de abril de 2012 para investigar a organização criminosa comandada por Carlinhos Cachoeira. Durante os trabalhos, a CPMI quebrou 92 sigilos bancários, 91 sigilos fiscais e 88 sigilos telefônicos de pessoas físicas e jurídicas. Tais quebras mostraram uma movimentação financeira de mais de R$ 84 bilhões. Foram também identificadas 117 empresas com transações suspeitas e mais de 1,3 mil pessoas físicas como recebedoras de recursos dessas empresas-fantasmas.
Entre os suspeitos, há gente de todos os setores, público ou privado. No setor público, após analisar todos os documentos e colher depoimentos, o relator pede o indiciamento ou o aprofundamento das investigações de autoridades dos três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. No Executivo, está o governador de Goiás, Marconi Perillo (PSDB), vários de seus secretários e alguns prefeitos. No Legislativo, o ex-senador Demóstenes Torres (ex-DEM-GO), o deputado federal Carlos Alberto Leréia da Silva (PSDB-GO) e vários vereadores. No Judiciário, o desembargador Julio Cesar Cardoso de Brito. E muitos funcionários públicos.
O relatório não fez vistas grossas a nenhum evento suspeito que poderia ensejar novas investigações, como por exemplo sobre a empresa Delta. O relatório “não apenas analisa como também propõe a transferência dos sigilos bancários e fiscal pertinentes ao Ministério Público e à Polícia Federal”, bem como recomenda a responsabilização criminal de 46 pessoas físicas.
Carlos Cachoeira não era só conhecido da sociedade e dos políticos do estado de Goiás, mas também do Congresso Nacional. Em 2004, foi investigado pela CPI dos Bingos, que recomendou seu indiciamento por diversos crimes.
Caso a maioria dos parlamentares que compõem a CPMI, capitaneados pelo PSDB, opte por rejeitar o relatório do deputado Odair Cunha (PT-MG), não só Cachoeira, mas todos que foram irrigado$ por recurso$ da organização criminosa sairão cantando a antiga marchinha de carnaval (As águas vão rolar): Garrafa cheia eu não quero ver sobrar. / Eu passo a mão na saca, saca, saca-rolha / E bebo até me afogar. Deixa as águas rolar! / […] / Se a polícia por isso me prender / E na última hora me soltar, / Eu pego a saca, saca, saca-rolha / E bebo até me afogar. Deixa as águas rolar!